Ana Gomes diz que vigilância policial a jornalistas contraria Estado de direito
A candidata presidencial esteve em campanha em Santarém.
A candidata presidencial Ana Gomes manifestou-se nesta quarta-feira “muito preocupada” com a notícia de vigilância policial de dois jornalistas que investigavam o caso e-Toupeira ordenada por uma procuradora, sem autorização de qualquer juiz.
Questionada pela comunicação social no final de uma manhã de campanha em Santarém, a antiga eurodeputada ressalvou ainda não ter “todos os detalhes” sobre o caso, mas disse ter tido informações que já a deixaram “muito preocupada”, sobretudo se as diligências não tiveram autorização judicial. “Parece-me isso completamente contrário ao que seria elementar num Estado de direito e sobretudo sendo direccionado sobre jornalistas”, salientou.
Ana Gomes acrescentou que “da mesma maneira” que defende “denunciantes como Rui Pinto”, considera o trabalho dos jornalistas “absolutamente indispensável a uma sociedade livre, a um Estado de direito democrático”. “Deixou-me muito inquieta, vou procurar saber mais informações e, se de facto não há controlo judicial, parece-me altamente preocupante”, afirmou.
Questionada se era um tipo de caso que se poderia passar na Hungria - depois de num debate recente ter acusado António Costa de agir como o primeiro-ministro húngaro no caso do procurador europeu -, a diplomata admitiu que sim. “Este tipo de fenómenos fomos vendo desenrolar-se em países onde foi posta em causa a independência da justiça e onde se usou alguns agentes da justiça para pervertem a democracia e Estado de direito”, criticou.
A Iniciativa Liberal também se mostrou indignada com a situação e manifestou solidariedade para com os jornalistas em causa. “É impensável que uma procuradora sem qualquer autorização de um juiz mande a polícia vigiar jornalistas. É uma afronta aos valores democráticos e um ataque sem precedentes na nossa história à liberdade de imprensa e, também, ao direito de reserva das fontes, o qual é protegido pela Constituição da República Portuguesa, pelo Estatuto do Jornalista e tem sido visto, e bem no nosso entender, como intocável pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”, lê-se numa nota enviada aos jornalistas.
O partido liderado por João Cotrim Figueiredo espera que se encontrem “responsabilidades o mais rápido possível, a começar por quem na hierarquia preparou, ordenou e sabia destes actos de vigilância”. “Para além disso, esperemos que a justiça funcione rapidamente, pois estas acções podem muito bem vir a constituir violações de sigilo, de correspondência e devassa da vida privada”, de acordo com a mesma nota.
Também André Ventura considerou “preocupante” que possa ter sido feita vigilância de jornalistas “se não houve autorização judicial para que isso”. “Espero que a hierarquia do Ministério Público (MP) possa averiguar pelo menos o que se passou ainda hoje”, afirmou o candidato no final de uma acção de rua em Santarém ao fim da tarde. “Li outra notícia de que até agora não havia nenhuma reacção por parte do sindicato do MP; espero que até ao final do dia ou nos próximos dias a procuradora-geral da República possa dar uma explicação sobre isso. A ser verdade que a moldura penal não o permitia e que a autorização judicial não existiu, é preocupante que tenha acontecido.”
No âmbito de um processo de investigação sobre a violação do segredo de justiça no caso e-Toupeira, em que a revista Sábado e o Correio da Manhã revelaram pormenores sobre buscas ao Benfica e detenções antes mesmo de terem acontecido, a procuradora Andrea Marques, do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa ordenou a PSP a fazer vigilâncias aos jornalistas Carlos Rodrigues Lima (da revista), e Henrique Machado (do jornal), actualmente na TVI.
“Com tal diligência, segundo o processo, a procuradora quis saber com quem é que ambos os jornalistas contactavam no universo dos tribunais, apesar de a investigação em causa dizer só respeito a uma eventual violação do segredo de justiça no caso e-Toupeira”, escreve a Sábado.
O Ministério Público esclareceu hoje que a vigilância policial de dois jornalistas que investigavam o caso e-Toupeira ordenada por uma procuradora não tinha de ser autorizada por qualquer juiz e que o processo decorreu “com respeito pela legalidade”.
No esclarecimento, o DIAP explica que se entendeu ser “de extrema relevância probatória” compreender com quem se relacionavam e que tipo de contactos estes jornalistas estabeleciam com “fontes do processo” para “identificar os autores das fugas de informação, também eles agentes da prática de crimes”.
O DIAP diz que a vigilância policial, ordenada a 3 de Abril de 2018, não tinha de ser validada por juiz de instrução “por não caber na sua competência tal como legalmente definida”. Esclarece que o inquérito teve por base notícias publicadas a propósito do “caso e-Toupeira” e que em investigação está “a fuga de informação que permitiu que, a 6 de Março de 2018, dia em que se realizou a operação de buscas e detenções, ainda antes da efectivação das diligências, já jornalistas de dois órgãos de comunicação social estivessem na posse de detalhes que sugerem o acesso a peças do mencionado processo”.
Manhã cheia
A manhã de campanha de Ana Gomes foi passada em Santarém, entre temas tão diversos como a possibilidade de inovar na tauromaquia, a memória de Salgueiro Maia ou até a importância da esquerda não abandonar os temas da segurança.
O segundo dia de campanha na rua da candidata presidencial desde que começou o período oficial, no domingo, arrancou com uma reunião com o presidente da Comunidade Intermunicipal (CIM) da Lezíria do Tejo e Presidente da Câmara de Almeirim, Pedro Ribeiro, e a conversa de mais de uma hora andou à volta de temas como a investigação aplicada e a inovação, mas foi a tauromaquia que ‘animou’ o debate.
“Perguntei se estavam a contemplar formas de manter as tradições do ponto de vista da coreografia, dos aspectos culturais, mas que fossem também compatíveis com os direitos dos animais”, explicou Ana Gomes, recebendo como resposta que os onze autarcas desta CIM são a favor da tauromaquia.
Questionada se este tema apareceu na campanha como forma de agradecer o apoio do PAN (um dos partidos que apoia a diplomata, a par do Livre), Ana Gomes rejeitou esta interpretação.
“São uma forma de mostrar as minhas próprias preocupações e convicções que, em certas matérias, são coincidentes com as do PAN, por isso tenho muito orgulho em ter apoio do PAN”, afirmou.
Sempre acompanhada pelo antigo autarca de Santarém do PS Rui Barreiro, a candidata seguiu para uma reunião e visita ao Comando Distrital da PSP, no final da qual aproveitou para deixar um aviso à esquerda.
“A esquerda tem de ter uma posição sobre as questões de segurança: é porque a esquerda desvalorizou muitas vezes as condições de funcionamento das forças de segurança, mas também das Forças Armadas, que hoje vemos infiltrações nestas forças de movimentos de extrema-direita que capitalizam o descontentamento e ressentimento”, alertou.
Por isso, Ana Gomes considerou que “as questões da segurança e da defesa são demasiado importantes para serem deixadas à direita”.
“Temos de ter forças de segurança bem instaladas, bem remuneradas, bem formadas para que tenham motivação e exerçam as suas missões com autoridade”, afirmou, garantindo que tal será uma “prioridade” se for eleita Presidente da República em 24 de Janeiro.
A manhã em Santarém terminou com uma visita ao hospital, com Ana Gomes a afirmar-se como “defensora do Serviço Nacional de Saúde”, do qual é utilizadora frequente.
“Em Bruxelas tive de recorrer ao privado, em Portugal tento recorrer ao público sempre que possível. Estive quase um ano à espera para me inscrever centro de saúde familiar da minha zona”, disse.
A candidata não quis deixar Santarém sem recordar o capitão de Abril, natural de Castelo de Vide, mas com estátua e parte da vida associada à cidade escalabitana.
“Estamos aqui na terra de Salgueiro Maia, foi daqui da Escola Prática de Cavalaria que saiu Salgueiro Maia no dia 25 e Abril de 1974”, afirmou, recordando ter assistido a esses momentos históricos ao vivo.
Não foram muitos os eleitores com quem se cruzou nesta manhã de campanha feita de visitas e reuniões, mas ao atravessar a rua antes de prestar declarações à comunicação social, Ana Gomes conversou breves instantes com uma cidadã de etnia cigana.
“Estava a dizer a esta senhora que a mim me chamavam a candidata cigana, e eu disse ‘com muito gosto’”, explicou, referindo-se a uma expressão utilizada pelo seu adversário André Ventura, líder do Chega.