A corrida às vacinas para a covid-19 pode ser um sprint ou tem de ser uma maratona?
Ninguém consegue falar de outra coisa. Entre os britânicos que querem vacinar toda a gente, ainda com uma dose que pode ser insuficiente, ou a velocidade dos israelitas, o mundo divide-se sobre o caminho a seguir.
Neste Inverno negro da covid-19, com variantes do novo coronavírus a surgirem em vários locais do mundo, as vacinas são escassas e valem ouro. Prova disso é que os dados científicos fornecidos pela BioNtech e a Pfizer para que a sua vacina fosse aprovada pela Agência Europeia do Medicamento (EMA) foram pirateados por hackers e andam na Internet, reconheceu o regulador. Alguém estará a fazer cópias-pirata da vacina? Não será de admirar – há notícias de que estão a ser vendidas online por poucas centenas de dólares doses de vacinas contra a covid-19 – ou sabe-se lá de quê –, noticia a Reuters.
Há uma impaciência por causa das vacinas contra a covid-19 que se tornou quase palpável. É verdade que é uma corrida contra o tempo, mas mais parece uma competição – embora a Organização Mundial de Saúde (OMS) tenha alertado que não será possível atingir a imunidade de grupo contra a covid-19 em 2021. “Vai demorar a levar as vacinas até às pessoas”, frisou a directora científica da OMS Soumya Swaminathan. “É preciso aumentar a escala da produção de doses, não apenas para milhões, mas milhares de milhões de doses. As vacinas vão chegar a todos os países – é preciso ter paciência”, pediu Swaminathan.
Entretanto, é preciso não esquecer as medidas de saúde pública que são eficazes a conter as infecções – as máscaras, lavar as mãos, os confinamentos quando não há outra possibilidade. Vão continuar a ser necessárias “pelo menos durante o resto do ano”, frisou.
E depois há os problemas logísticos – até a quantidade de agulhas disponíveis para fazer a imunização se pode revelar um problema, como aconteceu no Brasil, e também em França, onde até esta terça-feira foram imunizadas 190 mil pessoas. O Le Monde conta que vários hospitais estão a braços com uma falta de seringas. Por exemplo, no hospital de Montauban tinham sido entregues 4875 vacinas a 5 de Janeiro e era esperado o dobro esta semana; mas o número de seringas de que dispõem é três vezes inferior. Em Lille, para administrar 20 mil doses de vacina contra a covid-19 havia só dez mil seringas.
É difícil concentrar-se na mensagem sensata de Swaminathan quando o mundo se deixou embalar pela lógica da velocidade e da competição – qual é o país que imunizou mais, qual imunizou menos? Israel, Emirados Árabes Unidos e Bahrein vão à frente nessa disputa, segundo a plataforma OurWorldInData — uma parceria entre a Universidade de Oxford e a organização não governamental Global Change Data Lab.
Todos estes países beneficiam de serem pequenas nações, mas Israel destaca-se – nesta terça-feira, anunciou que as crianças com mais de 12 anos poderão começar as ser vacinadas também já a partir de Março, se houver ensaios clínicos a demonstrar que isso é seguro. Entretanto, não está a vacinar a população palestiniana.
"Brexit” e eleições
Em duas semanas de vacinação, um milhão dos nove milhões de habitantes de Israel recebeu já a primeira dose da vacina. Por trás do sucesso está um bom sistema de saúde, informatizado, e rodado em simulações de ataques de terrorismo biológico, explicou ao Le Monde Nadav Davidovitch, director da Escola de Saúde Pública da Universidade Ben-Gurion. “A isso deve juntar-se uma forte vontade política antes das eleições” – Israel vai pela quarta vez em dois anos às urnas e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu quer afastar as críticas pela gestão da pandemia.
Para isso, Israel terá até pago um preço acima da tabela pelas vacinas - o dobro, segundo uma fonte da Administração, não identificada, citada pela Reuters. Tudo para garantir que as teria em quantidade e a tempo.
O Reino Unido, que está a viver o pior período de sempre da pandemia, com o sistema de saúde a ameaçar o colapso – só nesta terça-feira, houve mais de 1200 mortes, 45.500 novos casos e 4200 internamentos – avançou com o plano para vacinar toda a sua população adulta até ao Outono. O país do “Brexit” é um exemplo perfeito de como o desespero com a pandemia se pode misturar com a política. Está a agora apostar em ser pioneiro na aprovação das vacinas, e em usá-las de forma diversa da recomendada.
A aprovação da vacina da Universidade de Oxford-AstraZeneca, vista como a “vacina britânica”, foi fundamental para que o Reino Unido se lançasse na aposta de tentar vacinar toda a população. Porque durante o ano esta vacina parecia ser a mais adiantada, e foi testada em vários locais do mundo, fazendo acordos de produção com empresas locais, há já uma grande quantidade de doses disponíveis desta vacina. No entanto, está a avançar com uma vacina sobre a qual subsistem dúvidas.
Houve erros na dosagem da vacina administrada aos voluntários durante os ensaios clínicos desta vacina, que dificultam avaliar a sua real eficácia, e está ainda a decorrer mais um ensaio nos Estados Unidos, exigido pela Food and Drug Administration. A Agência Europeia do Medicamento anunciou nesta terça-feira que poderá pronunciar-se sobre a vacina da AstraZeneca a 29 de Janeiro.
Mas enquanto a União Europeia e os EUA não se pronunciam, o Reino Unido juntou-a ao arsenal de vacinas do qual já constam a da Pfizer-BioNtech e a da Moderna. E está a inventar formas de usar estas vacinas para imunizar mais pessoas – como atrasar 12 semanas a dose de reforço, que deveria ser tomada cerca de três semanas após a primeira.
A OMS considerou que a distância entre doses da vacina da Pfizer-BioNtech (a única que certificou até agora) poderá ser alargada até seis semanas – metade do prazo considerado pelo Reino Unido. Não se sabe se um intervalo mais longo pode alterar a eficácia destas vacinas – que usam uma nova tecnologia –, e a sua alta taxa de protecção, na ordem dos 95%, só é alcançada depois da segunda dose.
Alguns cientistas, como Florian Krammer, da Escola de Medicina Icahn de Nova Iorque (EUA), temem que esta estratégia terapêutica ajude a surgir variantes do coronavírus com mutações resistentes às vacinas. “Eu não arriscaria. Se um país o fizer e der errado, isso terá consequências para todas as vacinas”, disse à revista científica Nature.
“É um risco significativo. Após a primeira dose, muitas pessoas não estão ainda protegidas”, disse Moncef Slaoui, o cientista que lidera o programa para o desenvolvimento de vacinas para a covid-19 nos EUA. Se estas pessoas começarem a expor-se mais ao contágio, a estratégia pode redundar num enorme fracasso, disse, citado pela revista Science.