Humbaba, as florestas e a covid-19
Há padrões de desflorestação em todos os continentes, embora diversos e com causas diversas. Um artigo recente, baseado em dados obtidos por satélite, conclui que na Europa houve uma perda de biomassa florestal de 69% no período 2016-2018 relativamente a 2011-2015.
As plantas vasculares surgiram no Silúrico, há cerca de 400 milhões de anos, e a primeira planta que se assemelhou a uma árvore, por ter conseguido resolver o problema biomecânico de suportar o seu porte vertical elevado e transportar água e nutrientes desde as raízes até às folhas, foi a Archaeopteris, no Devónico. Tinha folhas semelhantes às dos fetos e reproduzia-se por meio de esporos. Gerou-se assim uma linha evolutiva que iria ter grande sucesso. Com a invenção das sementes as florestas de coníferas espalharam-se pelo mundo e dominaram a flora até atingirem um clímax no final do Jurássico. Foi nessa altura, há cerca de 160 milhões de anos, que surgiram as plantas com flores e frutos ou angiospermas (do grego angeion para vaso ou recetáculo e sperma para semente). A evolução dos primatas, nossos antepassados, foi profundamente influenciada pelas florestas de árvores com flores pois foi aí que adquiriram algumas das suas características essenciais como, por exemplo, a visão estereoscópica que permite avaliar as distâncias na busca de frutos nas árvores. Devemos muito às árvores, foi o habitat preferido desses nossos antepassados durante dezenas de milhões de anos.
Algum tempo depois de termos deixado as árvores para ser bípedes e da extraordinária evolução cultural do Homo sapiens desde há cerca de 40.000 anos, eis que, no Crescente Fértil do Médio Oriente, começa a florescer a agricultura. O valor das florestas para o homem começou a mudar radicalmente, pois deixaram de ser um dos seus mais frequentes habitats para passarem a ser principalmente uma fonte de recursos. Provavelmente as florestas impressionavam pela majestade das árvores e com uma visão obstruída pela vegetação densa haveria até algum receio de as penetrar.
Esta é a ideia que nos fica ao ler uma das primeiras obras da literatura mundial, escrita há 4100 a 3800 anos, a epopeia de Gilgamés, rei de Uruk, na Suméria. Gilgamés, “aquele que testemunhou o abismo”, e o seu companheiro Enkidu, um homem forte e engenhoso, criado pelos deuses para impedir Gilgamés de oprimir o povo de Uruk, buscam a glória e a imortalidade. Decidem viajar e enfrentar Humbaba, o Terrível, um ogre gigante que é o guardião da Floresta dos Cedros. Nos textos sumérios da epopeia a floresta localiza-se a oriente de Uruk, provavelmente na Cordilheira de Zagros, mas nas versões acadianas está a noroeste onde se situa actualmente o Líbano. Quando chegam à Floresta dos Cedros, Gilgamés sucumbe aterrorizado perante os rugidos de Humbaba, mas Enkidu consegue restituir-lhe coragem após várias tentativas sem sucesso. Há um duelo violento e Gilgamés consegue remover as sete auras mortíferas e divinas que rodeiam e protegem Humbaba, corta-lhe a cabeça, corta os cedros, incluindo o mais alto que servirá para fazer a porta da cidade de Nipur, e atinge uma fama insuperável para todo o sempre. Porém, antes de morrer, Humbaba vocifera uma maldição contra Enkidu que acaba por o matar.
A ciência permite-nos hoje reconstituir a história e apreciar o mito. Estudos de palinologia (análise dos grãos de pólen e esporos) feitos em amostras obtidas em furos nos sedimentos lacustres no Vale do Ghab, na cordilheira litoral da Síria (Yasuda, 2000), revelam o desenvolvimento de uma floresta de carvalhos de folha caduca e de cedros do Líbano com início há 14.500 anos, no período climático quente de Bølling–Allerød. No princípio do Neolítico, há cerca de 9000 anos, surge o pólen de oliveiras e culturas agrícolas, e há cerca de 7000 anos o pólen dos carvalhos de folha caduca e dos cedros do Líbano começa a decrescer acentuadamente até desaparecer das amostras há 4910 anos, no início da Idade do Bronze.
A madeira do cedro do Líbano tornou-se um produto muito valioso, comercializado através do Mediterrâneo pelos Canaanitas a partir dos portos de Tiro, Sidon e Gubla, a atual Beirute, a quem os Gregos mais tarde chamaram Fenícios. Há registos de que Gubla começou a comercializar madeira de cedro do Líbano, azeite e vinho em troca de utensílios de cobre, turquesas e outras pedras preciosas com os Egípcios nas primeiras dinastias do Império Antigo, que durou desde 2686 a 2181 a.C.. A magnífica barca funerária com 43,6 metros do misterioso Faraó Khufu (que reinou entre 2589 e 2566 a.C.), a que os Gregos chamavam Cheops, é feita de madeira de cedro do Líbano e ainda tinha perfume a cedro quando foi descoberta em 1954. Foi encontrada debaixo da pirâmide de Khufu, a maior e mais antiga das três pirâmides de Giza. O comércio da madeira de cedro também se desenvolveu na Mesopotâmia onde os troncos eram transportados em caravanas e no rio Eufrates até ao Golfo Pérsico e à costa oriental de África.
Gradualmente ao longo de milénios o Médio Oriente foi desflorestado, aumentando a erosão e a desertificação desde o Líbano ao Irão e da Turquia ao Iraque. Algumas florestas de pinheiros e cedros persistiram até ao século XIX mas a maioria desapareceu. Os magníficos cedros do Líbano sobrevivem hoje apenas em pequenas manchas ameaçadas pela expansão da agricultura, abate ilegal de árvores, pastoreio intensivo, fogos e secas mais frequentes provocadas pelas alterações climáticas.
Há padrões de desflorestação em todos os continentes, embora diversos e com causas diversas. Um artigo recente, baseado em dados obtidos por satélite, conclui que na Europa houve uma perda de biomassa florestal de 69% no período 2016-2018 relativamente a 2011-2015, com grandes perdas na Península Ibérica, nos países Nórdicos e do Báltico (Ceccherini, 2020). Porém, as maiores perdas de área florestal dão-se nos trópicos e especialmente na floresta tropical húmida que contém mais de 50% da diversidade biológica da Terra. A análise à escala global dos vários tipos e causas de desflorestação, que no período de 2001 a 2015 totalizou uma área de 314 milhões de hectares, indica que 27% se deve a uma mudança permanente no uso dos solos para a produção de commodities, tais como carne bovina, soja, óleo de palma e mineração, 26% para criação de florestas plantadas de gestão continuada, 24% para a expansão da agricultura de pequena e média escala por vezes abandonada posteriormente e 23% resulta de fogos florestais em que o terreno ardido não é reutilizado para a agricultura nem para outros fins (Curtis, 2018). Outra forma de olhar o problema é constatar que globalmente restam apenas 1740 milhões de hectares de floresta (principalmente na Amazónia, África Equatorial, Nova Guiné, Canadá e Rússia), ou seja 40,5% da área total, com um grau elevado de integridade ecológica ao nível da paisagem, e nesta área apenas 27% constituem áreas protegidas. As sete auras divinas de Humbaba foram destruídas!
Todos conhecemos a importância dos serviços dos ecossistemas florestais, no que respeita: aos ciclos da água e carbono, à preservação da biodiversidade, ao combate à erosão e desertificação, à manutenção da fertilidade dos solos, bem como a novos medicamentos e aos valores educativos, culturais, estéticos e éticos. Há ainda outra razão urgente para travar a desflorestação que é o aumento do risco de zoonoses. Desde 1940 as zoonoses foram responsáveis por 75% das doenças infecciosas emergentes e o seu número não pára de aumentar. A maioria tem origem em animais selvagens, devido à procura crescente destes animais para alimentação. A destruição das florestas coloca as pessoas em contacto com animais selvagens e cria novas oportunidades de os consumir. Um artigo publicado na Nature em 2 de Fevereiro de 2020 conclui que o SARS-CoV-2 tem um genoma 96% idêntico ao de um coronavírus encontrado num morcego Rhinolophus affinis apanhado na província de Yunã na China (Zhou, 2020). Não se sabe ainda como o vírus saltou para o homem por meio de outro animal hospedeiro, devido às dificuldades colocadas pela China a esta investigação. Se a desflorestação e o consumo de animais selvagens não forem travados as zoonoses vão continuar a crescer em número e perigosidade.
A pandemia da covid-19 originada pelo SARS-CoV-2 está a provocar uma das maiores crises de saúde pública, social e económica do mundo moderno. Porém, os efeitos têm sido diferenciados através do mundo, com os países Ocidentais a serem mais afectados do que alguns países asiáticos como a China e o Vietname, porventura porque usam medidas de confinamento menos restritivas e menos agressivas das liberdades individuais. Em 24 de Novembro de 2020 previa-se para esse ano um crescimento económico de 2,3% no Vietname, 2% na China e um decrescimento económico de 4% nos EUA, 9% na Índia e 11% no Reino Unido. A questão crescente é saber em que medida o conceito Ocidental de liberdade, intocável e incontornável, será compatível com um mundo que irá ter cerca de 9200 milhões de habitantes em 2050, cerca de 11.000 milhões em 2100 e onde as crises provocadas por vários vectores de insustentabilidade, como por exemplo a desflorestação, a poluição, a sobreexploração dos recursos naturais e as alterações climáticas, serão mais frequentes. É possível inverter este caminho promovendo uma mudança social transformativa global que confira prioridade às pessoas, ao planeta Terra, nossa casa comum, e a formas de prosperidade para além da vertente exclusivamente económica. Será necessário praticar um novo paradigma cultural caracterizado essencialmente por promover à escala global os valores sociais e privilegiar a regeneração em lugar do interesse próprio.