O caso do procurador europeu entre o escândalo e a ironia do destino
Após audição na Assembleia da República, os nossos deputados consideraram os três candidatos, selecionados pelos órgãos de gestão das magistraturas, habilitados a exercer funções na Procuradoria Europeia.
O escândalo que, persistentemente, alguns tentam alimentar em torno da nomeação do procurador nacional que integra a procuradoria europeia não deixa de comportar aspetos irónicos, ainda que maldosos e mesquinhos.
O regulamento europeu que institui a Procuradoria Europeia não obriga os Estados a selecionar os seus candidatos nacionais por concurso interno.
Muitos Estados não o fizeram, tendo assumido diretamente os respetivos governos a seleção dos nomes a indicar às instâncias europeias.
Portugal, pelo contrário, atribuiu ao Conselho Superior da Magistratura e do Ministério Público – órgãos independentes do poder político – a competência para selecionar os candidatos nacionais à Procuradoria Europeia.
Da seleção, realizada por este último Conselho, saiu classificado em primeiro lugar o procurador da República José Guerra, tendo ainda sido selecionados outros dois procuradores que, necessariamente, teriam de integrar a lista de três nomes a propor aos órgãos competentes da União Europeia.
Procurou assim o Governo respeitar a independência das magistraturas nacionais e, também, a da Procuradoria Europeia.
Após audição na Assembleia da República, os nossos deputados consideraram todos os candidatos, selecionados pelos órgãos de gestão das magistraturas, habilitados a exercer funções naquele órgão europeu de justiça.
O júri de peritos europeu que, depois, avaliou os candidatos não rejeitou nenhum dos nomes – como aconteceu com alguns candidatos de outros países –, mas emitiu um parecer não vinculativo, no qual situou em primeiro lugar um dos outros dois procuradores portugueses.
A decisão da escolha entre esses três candidatos, aprovado pelo júri de peritos, deveria, depois, caber – como coube – ao Conselho Europeu competente.
O Governo português, tomando em consideração o juízo proferido pelo Conselho Superior do Ministério Público, manifestou ao Conselho Europeu a sua preferência pela escolha do procurador José Guerra.
O Conselho Europeu, que possuía todos os elementos documentais relativos às provas e currículos contidos nos dossiês dos candidatos portugueses – e que, certamente, analisou para o efeito – acolheu a sugestão do Governo português.
É poder exclusivo do Conselho Europeu – e não do júri de peritos, que apenas pode emitir parecer – escolher entre os nomes aprovados por aquele. Por isso lhe são apresentados três nomes considerados aptos para a função e não apenas um.
É verdade que a missiva enviada pelo Estado português e elaborada a partir de uma nota informativa, da responsabilidade de uma direção do MJ, continha informações que não coincidiam com o currículo fornecido às instâncias europeias pelo procurador José Guerra.
Nenhuma dessas informações incorretas era, no entanto, suscetível de poder legalmente influir na escolha do Conselho Europeu.
É que, tratando-se de uma missiva protocolar de indicação de uma preferência, ela não visava corrigir ou substituir os elementos documentais do processo do indigitado candidato que estavam na posse do Conselho e haviam já sido analisados pelo júri de peritos.
Em suma: tal missiva não se destinava a acrescentar a base documental que fundamentou a decisão do Conselho Europeu, pois este, legalmente, só podia fundar a sua resolução nos elementos documentais previamente reunidos, analisados e fornecidos pelo júri de peritos.
Bem ou mal, ela destinou-se, apenas, a explicar a razão da opção do Governo português. Mal, pelos vistos.
Como é que uma tal nota pode ter errado tanto, quando interpretou os dados contidos no currículo do procurador José Guerra, é matéria que importa averiguar no âmbito do MJ.
Com, ou sem ela, porém, a indicação da preferência do Governo português – que deu prevalência ao juízo independente dos conselhos das magistraturas nacionais – não foi rejeitada pelo Conselho Europeu.
Esta é a verdade simples deste episódio e também a ironia – amarga – de a ministra da Justiça ter procurado respeitar a escolha dos órgãos independentes que governam as nossas magistraturas.
Irónica porquê, então?
Porque, caso tivesse feito como alguns governantes de outros países e indicasse diretamente quem queria, não teria tido os dissabores por que está a passar.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico