Biografia versus história – uma demanda pela autoridade
Estes dois batalhões têm tudo para subscrever o mesmo tratado através da diplomacia, ao invés de uma guerra palavrosa e de gritaria. Em ambos os campos, pode enxergar-se a irrenunciável luta pela dignidade humana.
Redes sociais e jornais estão prenhes de frases acusatórias e vituperiosas por causa da existência ou não de confinamento, das regras desse confinamento e do grau desse confinamento. Duas frentes confrontaram-se permanentemente numa acirrada batalha que redundou em desaforo. As razões desta batalha, acaso estivéssemos num outro século, provavelmente nunca teriam existido. Porque não existiam ainda as redes sociais, jornais online e a luta pelos cliques e likes. Essas razões relacionam-se, por uma ou outra via, uma mais direta do que qualquer outra menos direta, com a autolegitimação da autoridade. Os generais de ambas as coortes propugnam pelo reconhecimento de que os seus argumentos valem mais do que os argumentos do seu homólogo oponente. Eis isto.
Numa das frentes, em cujas fileiras perfilam os historiadores, sociólogos, economistas, empresários, filósofos e alguns epidemiologistas, artistas e outros intelectuais, tem-se defendido a estratégia nacional enquanto história, multiplicidade, realidade enquanto nação, população e regiões. No exército opositor, os soldados e capitães defendem uma estratégia de saúde alicerçada na biografia, na particularidade, na pessoa em si que sofre, no doente singular, na unicidade. Nas suas falanges integram os médicos, os enfermeiros, os técnicos auxiliares de saúde, os técnicos superiores de saúde, os técnicos de meios complementares de diagnóstico, o familiar, o cuidador e outros epidemiologistas. Este modelo bipartido não é inflexível. Haverá, com certeza, em cada um dos grupos, elementos cuja “nacionalidade” corresponda à do grupo antitético, assim como proselitismos com mudança de grupo. Há, ainda, os “sintéticos”, que se preocupam com o primado do diálogo entre tese e antítese. E quero acreditar, porque acredito, que estes últimos perfazem um número prevalecente.
O irrompimento desta guerra de palavras gerou um espingardear permanente cheio de imprecações e vitupérios. Os autores de tais grandiloquências, em planos diversos, mas que comungam de imperativos morais semelhantes, uns planando na biografia e outros na história, não reconhecem a face familiar do irmão.
O paladino da biografia não quer, logicamente, o aumento do desemprego e da pobreza, o enfraquecimento da economia, o agravamento da saúde mental da população, o encolhimento da cultura e outras coisas que tais, simplesmente por defender um confinamento mais apertado. Porque viram alguém morrer, porque aspiram coágulos gigantes do trato aerodigestivo dos doentes hipocoagulados das unidades de cuidados intensivos (UCI), porque fazem a higiene desses doentes, porque os entubam, porque lhes dissecam os vasos e os ligam a máquinas, porque lhes monitoram sinais vitais e funções orgânicas e porque experienciam o bulício campal dos hospitais, não advém por dedução matemática que defendam o caos social, económico e cultural. O que, para mim, salta à vista da sua retórica é a defesa incondicional e última da vida humana.
Já os granadeiros das linhas da história não desejam ver o agravamento do número de mortes, o incremento do número de internamentos, o aumento da ocupação das UCI, um maior sofrimento humano, nem o evoluir para a rutura do SNS, porque pugnam pelos direitos socias, pela vitalidade da economia, pela revivescência da cultura. Dos “trons” dos canhões destas fileiras vejo a defesa da sociedade, da liberdade e da igualdade.
Em ambos os campos, pode enxergar-se a irrenunciável luta pela dignidade humana. Só se mapeia a realidade com a intuição destas duas sub-realidades. Só assim se faz um debate informado que, como qualquer debate informado, se define pelo dilema. Só assim se planeia, com base no conhecimento. Por isso, esta peste é coisa que se descobre mais do que se planeia.
Estes dois batalhões têm tudo para subscrever o mesmo tratado através da diplomacia, ao invés de uma guerra palavrosa e de gritaria. Um tratado de valores onde se consagra a dignidade humana como ponto de partida para as nossas escolhas e ponto de chegada para as nossas ações.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico