Cerco ao Porto? Só se for para o muralhar contra a decrepitude intelectual
O cerco ao Porto só se justificaria, neste momento, para o isolar dos efeitos deletérios de investidas tão afrontosas e ignominiosas como as da DGS. O esgotamento diretivo e consultivo da DGS parece ter atingido a rutura com toda e qualquer noção de bom senso e de moralidade epidemiológica e clínica.
Vêm, pelos vistos, arautos de um aprofundamento do estado de emergência. E de que forma vem esse aprofundamento do estado de emergência? Sob a forma de um pretenso cerco sanitário à cidade do Porto. Esta medida foi vozeada pela própria diretora-geral da Saúde.
Parece haver uma evocação da história, uma memoração do cerco sanitário do Porto que data do ano de 1899, altura em que o médico municipal do Porto, Dr. Ricardo Jorge, comunicou às autoridades de Lisboa a peste bubónica como causa provável de umas mortes estranhas na Rua da Fonte Taurina. Todavia, as medidas decretadas pelo governo e expiadas por Ricardo Jorge, aliás defensor de medidas de higienização com aversão ao cerco militar, foram tomadas num contexto em que o fim último seria a contenção de um possível foco epidemiológico, com vista a evitar a propagação da doença.
Hoje, o cerco ao Porto surge de uma interpretação devaneadora dos números de infetados e de mortes na região do Norte. E esta ideia rasa aflora no meio de uma profusão de textos nos jornais sobre os cuidados que deverão sofrear conclusões precipitadas desses números. Ora, conclusões precipitadas acabaram de vir a público, tomadas pela DGS de Graça Freitas. É com grande pesar que leio esta barbaridade de um centralismo atado na sua inoperância.
Que consequências beneméritas tirar-se-ão de um cerco ao Porto? Qual a racionalidade de um cerco deste género ao Porto? Rodear o Porto com as escopetas sanitárias destas medidas implica como consequência imediata uma violação dos universais em saúde. Para começar, diminui a acessibilidade de doentes aos dois maiores hospitais da região metropolitana do Porto (Centro Hospitalar Universitário São João e Centro Hospitalar Universitário do Porto), com interrupções nas linhas de referenciação hospitalar.
Não me refiro apenas aos casos urgentes ou emergentes. Basta pensar nos doentes oncológicos que vivem fora da cidade do Porto e que são seguidos nos hospitais dessa cidade. E os profissionais de saúde que vivem fora da cidade do Porto e que lá trabalham? Estes podem transitar de um lado para o outro? E fornecedores de hospitais? É um cerco atenuado que visam?
Depois, há o risco de anulamento de um esforço nacional conjunto entre os hospitais de saúde em plena pandemia, em fase de mitigação, em que a gestão dos cuidados, mormente cuidados intensivos, exige um reforço da comunicação entre todos os hospitais do país.
Para ir mais longe, que efeitos sociais poderão ter estas medidas, para além de acentuar as desigualdades sociais já aqui referidas no acesso à saúde? Quais as decorrências sociológicas dessa nova pragmática em terras nortenhas? Que agravamentos adviriam dessas consequências no combate a uma doença em que os comportamentos individuais assumem uma preponderância irrenunciável?
O cerco ao Porto só se justificaria, neste momento, para o isolar dos efeitos deletérios de investidas tão afrontosas e ignominiosas como as da DGS. O esgotamento diretivo e consultivo da DGS parece ter atingido a rutura com toda e qualquer noção de bom senso e de moralidade epidemiológica e clínica.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico