Carta para a geração que nasceu em 2020

Na verdade, o teu passado, que é o meu futuro, começa a ser decidido agora, por mim e por todos nós, que temos o dever de, com pequenos gestos – como a adesão massiva à vacina - fazer de 2021 o início de uma era ampla de oportunidades e reencontros.

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Picsea/Unsplash

Caro leitor,
 

Muito do que diariamente escrevo resulta de uma necessidade e o destino habitual do meu pensamento são páginas de cadernos manuscritos que dificilmente serão novamente abertos. Ocasionalmente, um ou outro texto parece ter alguma utilidade e é nesse momento que arrisco a partilha. Mas mesmo aí não penso num destinatário em concreto. Hoje é a excepção à regra. Estas linhas têm um leitor específico. Esta crónica é para ti, que nasceste em 2020.

Como um náufrago que envia um SOS numa folha de papel dentro de uma garrafa lançada ao mar, assim também envio estas palavras que percorrerão espaço e tempo. Encara, portanto, esta carta como uma reflexão pessoal de um médico de família que esteve no terreno e tentou discernir para lá da espuma do imediato. É provável que valorizes mais este registo do que quando, no teu tempo, ouvires pela minha voz o que se passou. Nessa altura o meu relato pode ser interpretado como uma mitificação do passado.

Estou certo que já te contaram, e aprendeste cedo na escola, que 2020 ficou marcado pela pandemia causada pelo vírus SARS-Cov-2. Provavelmente tens ao dispor gráficos e tabelas com o número de infectados e a mortalidade. Presumo que a vossa geração deve comentar “Como foi possível errarem assim?”. É importante que resistas à armadilha de julgar usando o conhecimento que só muito mais tarde se tornou acessível. Com este exercício terás mais empatia perante as nossas falhas.

Mas então não podíamos ter evitado parte do que aconteceu? Tenho de ser sincero contigo: é claro que podíamos ter feito melhor. Como sabes, tivemos comunidades que responderam melhor à crise. Apesar das diferenças, os países que deram o melhor exemplo tiveram líderes que atempadamente valorizaram os dados científicos e os profissionais de saúde no terreno e foram adaptando as medidas ao saber que se ia acumulando. As nações que ficaram para os teus livros de História foram também aquelas que, para além das restrições, souberam reforçar os laços que ligam a sociedade e apoiaram os mais frágeis, nomeadamente, os mais velhos e os mais pobres.

Assumo que nos teus manuais deve existir um capítulo autónomo para a vacina para a covid-19. Foi a primeira vez que um esforço global produziu uma solução com qualidade e segurança em tão curto espaço de tempo. Os cientistas ofereceram esperança à humanidade. Estamos juntos neste pequeno planeta, e quanto mais cedo percebermos isto melhor. Sendo assim, a vacina não pode ser exclusiva dos mais ricos.

Será, caro leitor, que sorriste perante esta minha última frase? Estarei a ser ingénuo ou tu já sabes que a fraternidade entre povos foi finalmente uma realidade? Nem imaginas a quantidade de alegados profetas da desgraça que, vestindo a pele de oráculos, tentam vender cenários distópicos inevitáveis. Mas ambos sabemos que, na realidade, não existe nenhuma força do destino, nenhuma mão invisível que já escreveu a História. Na verdade, o teu passado, que é o meu futuro, começa a ser decidido agora, por mim e por todos nós, que temos o dever de, com pequenos gestos – como a adesão massiva à vacina - fazer de 2021 o início de uma era ampla de oportunidades e reencontros.

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