Os portugueses no Reino Unido temem que o Natal seja “mais um voucher” cancelado

O que fazer quando os governos mudam as regras a meio da viagem? Entre pagar testes para o novo coronavírus à chegada ou cancelar o regresso e o Natal em família, os portugueses no Reino Unido dividem-se. E, alguns, nem tiveram escolha.

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Passageiros da British Airways a chegar ao Rio de Janeiro Reuters

Quando as fronteiras se começaram a fechar para quem chegava do Reino Unido, Tiago Anjinho ficou retido durante a noite no aeroporto de Berlim. “As regras com que todos os passageiros estavam a contar à chegada, alteraram-se durante o voo”, relata o violoncelista. Ao mesmo tempo, João André Costa decidia, pela primeira vez em 13 anos, passar o Natal em Londres; Inês Ramos pagou 100 euros para ser testada à chegada ao Aeroporto Francisco Sá Carneiro, no Porto, e Bruno Carvalho, outro português a residir em Inglaterra há dois anos, descobriu no portão de embarque que não iria poder apresentar a filha de três meses à avó.

Os portugueses com voos marcados desde Novembro foram “surpreendidos” com o apertar das restrições, devido à rápida transmissão de uma nova variante do vírus que provoca a covid-19 e que justificou o confinamento de Londres, da região sudeste e de parte do leste de Inglaterra. 

​Bruno Carvalho passou o dia de ontem a escrever reclamações à Ryanair. Depois de ter o resultado negativo de um teste PCR, o check-in feito e despachar as malas, os funcionários da companhia aérea irlandesa barraram a entrada à pessoa sem passaporte português com quem viajava —​ já no portão de embarque. “Disseram-me uma coisa horrível: ‘Não é a sua esposa, e se não são casados, não são uma família’.”

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Bruno Carvalho e a família DR

O engenheiro de comunicações respirou fundo, traduziu as informações no portal das comunidades portuguesas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, mostrou o site e repetiu: “Vivo em união de facto, tenho uma filha em comum e para todos os efeitos somos um casal.” O Governo decretou no domingo que apenas os residentes em Portugal ou os nacionais portugueses e respectivos familiares possam entrar no país, oriundos do Reino Unido.

Mas a resposta foi categórica, segundo o que relata: “as directrizes que temos só permitem o embarque de nacionais e residentes”. “Estive 20 minutos a discutir. A certa altura pediram-me uma prova de uma conta de luz ou água paga pela minha esposa em Portugal”, diz, incrédulo. “Depois, fecharam os portões. E nós tivemos de voltar para casa.”

Não foi fácil contar à mãe que não iria testemunhar o primeiro Natal da neta. “Talvez tenhamos um final melhor se a conseguir trazer cá, depois das festas, mas também não acho que vá ser fácil”, diz. 

A viajar com a mesma companhia, na mesma manhã, Inês Ramos repetia o mesmo mantra de cada vez que um alerta de email soava. “Vai acontecer, vai acontecer, vai acontecer.” O receio de um desfecho semelhante ao dos passageiros impedidos de embarcar em voos da TAP passou a ansiedade no comboio nocturno até ao aeroporto de Stansted, depois a um nó no estômago enquanto esperava em frente ao placard das partidas. A palavra “cancelado”, a vermelho, começava a aparecer cada vez mais vezes à medida que a noite avançava. Mas chegou a madrugada e o voo onde ia escapou. Mal pôs os pés no Porto, saiu disparada para a fila onde os recém-chegados sem comprovativo de teste aguardavam para serem testados. “Fui a primeira da fila”, diz. “Todos recebemos um email a avisar que isto iria acontecer à chegada, mas claramente não o interpretamos todos da mesma forma.”

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Inês Ramos faz teatro musical e dá aulas em Londres. DR

Outros passageiros questionaram o preço do teste e exigiram que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras enumerasse as alternativas, testemunhou. “Se não tiver 100 euros para pagar agora o teste, como faço?”, ouviu perguntar. Uma das sugestões, anotou, era fazer o teste num outro laboratório e voltar para apresentar o resultado no aeroporto nas 24 horas seguintes. “Havia apenas uma pessoa a recolher formulários de identificação, outra com as zaragatoas e o avião todo à espera. Foi caótico, não vou negar.”

Apesar das “informações contraditórias”, o processo, no seu caso, foi “muito rápido”. “Aterrei às 9h15 e às 9h40 já tinha feito o teste.” Disseram-lhe que teria de aguardar em casa pelo resultado. Ao final da tarde de 22 de Dezembro, ainda não tinha sido contactada.

Nos últimos dias em Londres, a artista e professora de teatro musical, de 28 anos, tem interpretado a Sininho em Peter Pan, “espectáculo que, por ser ao ar livre, não foi cancelado”. O “palco” era a entrada dos supermercados Tesco, uma das principais cadeias do Reino Unido. “Estavam sempre a abarrotar”, garante. Mas era a dar aulas que se sentia menos segura: nas escolas onde trabalha, “ninguém usa máscaras, porque nem é obrigatório, nem encorajado”.

Uma noite para esquecer (ou não, porque correu tudo bem)

Horas antes dos voos de Inês e Bruno, a polícia de Berlim parou o autocarro onde Tiago Anjinho viajava, ainda dentro do aeroporto onde ia fazer escala para Lisboa. “Fiquei com a sensação que os agentes não sabiam bem o que estavam a fazer. Só repetiam: vocês não podem entrar na Alemanha. Estavam a receber informações naquele momento. Disseram que as regras iriam mudar e que iriam ter de ver como fazer nas próximas horas. Só pensavam que as pessoas que ali estavam vinham de Manchester e de Londres e havia a possibilidade de terem a mutação do vírus. Quiseram ser cuidadosos”, salvaguarda.

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Tiago Anjinho está a fazer o mestrado na Royal Academy of Music, em Londres DR

Sem cidadania alemã e sem teste negativo, que não era obrigatório quando embarcou, aguardou 1h30 por novas informações. Quando a polícia voltou, pediu que os “cerca de 100 passageiros” fizessem uma fila. Iriam dormir no aeroporto, em camas do exército, até serem testados na manhã seguinte. Deram-lhes água e comida. “As pessoas começaram a perder os voos de ligação, porque a maior parte nem ia sair do aeroporto, começaram a ficar nervosas, a dizer que aquilo não era legal, que não as podiam manter ali.” As autoridades perguntaram se alguém queria desistir das viagens e voltar para o Reino Unido. O voo para Lisboa partia às 14h. “Eu estava tranquilo”, diz. “O resultado chegou às 13h, negativo, e fui a correr para o meu voo. Tive muita sorte.”

O plano inicial já era fazer o teste à chegada de Portugal, conta, até porque Tiago vive com os avós. Já esteve infectado com o SARS-Cov-2, há semanas. “Claro que se soubesse que isto ia acontecer teria feito o teste em Inglaterra, com antecedência. Mas todas as pessoas ali tinham um plano: seja isolar-se em casa, seja fazer o teste à chegada. Estávamos a cumprir as regras — elas é que mudaram de repente”, diz.

À chegada a Lisboa, não lhe foi pedido comprovativo de um teste, diz. Agora, já com a família em Coimbra, o estudante de mestrado na Royal Academy of Music está feliz, a ultimar as prendas para o Natal. “Foi uma situação especial. Estas coisas acontecem, é uma pandemia e eu sinto que fui bem tratado, dentro do possível.”

Já as prendas de João André Costa para a família ainda estão dentro das malas meio por (des)fazer, espalhadas pela sala da casa em Londres, “enquanto tenta processar o que se está a passar”. Antes mesmo de os governos da União Europeia fecharem as fronteiras a quem chega do Reino Unido, decidiu não correr o risco e cancelar o voo, trocando-o “por mais um voucher para acrescentar à lista”. “Começamos a pensar: uma coisa era não poder sair, mas e se se põe a hipótese de nem sequer poder voltar a entrar, em conjunto com a infeliz coincidência da saída da UE?”

“A desilusão foi muita”, diz, salvaguardando que não são apenas os imigrantes a sofrer consequências. “Infelizmente, o governo não tem sido ágil a tomar medidas, no que se refere a proteger a população. São desorganizados, as medidas são tomadas à última hora. Houve imensas pessoas a viajar de Londres em comboios cheios, porque só tinham seis horas para sair de Londres e passar o Natal com a família.”

O professor já tinha planos, com o consentimento dos familiares: alugar apartamento e carro separados, mesas de Natal com distância, janelas abertas. “Estávamos organizados e pelo menos estávamos com a nossa família. Não precisamos que nos confinem em Inglaterra, a 2000 quilómetros de todos.”

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