E se 2020 se tornar hábito?
Ao longo de décadas, as políticas e a falta de visão e liderança foram adiando o problema. Terão de ser as políticas e a política a resolvê-lo. É preciso agir de forma integrada, da mobilidade à agricultura, passando pelo rápido crescimento do setor tecnológico, e fazer refletir no modelo económico o real custo das emissões, da poluição e da destruição de ecossistemas.
2020 foi terrível. A pandemia que alguns temiam e que poucos prepararam ceifou vidas, quebrou economias e provocou um enorme retrocesso em grandes lutas da Humanidade, como a luta contra a fome ou contra a pobreza. E, no entanto, temo que algumas das cenas de 2020 se possam repetir de forma frequente no futuro próximo.
Refiro-me às consequências da crise climática. Escondida pela pandemia, esta crise deu importantes sinais de agravamento e mostras de ser difícil de ultrapassar. Contrariamente às manchetes esperançosas durante os primeiros confinamentos, acabamos 2020 com mais, substancialmente mais, CO2 na atmosfera que em 2019. O mundo continua a construir centrais a carvão e a comprometer-se com o seu uso nas próximas décadas, que deveriam ser de reforma das velhas energias da revolução industrial.
A maior quebra relativa de emissões desde a 2.ª Guerra – 7% relativamente a 2019 – mostra, pelo contrário, como será difícil resolver o problema. E, ao descer tão pouco depois de confinamentos à escala global, mostra também como a aposta nos comportamentos individuais não é a aposta certa, e pode até distrair das essenciais respostas sistémicas.
Até aqui era hábito ouvir conjugar a crise climática no futuro. No entanto, 2020 mostrou que ela já chegou. Refiro-me aos recordes de temperatura verificados por todo o planeta e ao longo de todo o ano, à terrível época de furacões no Atlântico, aos incêndios na Austrália, ao recorde negativo da quantidade de gelo em falta no Ártico, entre outras. Tal como académicos e ativistas têm avisado, os danos fazem-se sentir mais junto daqueles que menos contribuíram para a crise climática: recomendo ver algumas fotografias do estado das Honduras depois da passagem de dois furacões seguidos.
Por cima de tudo isto, temos um conjunto enorme de “distrações”, da pandemia propriamente dita aos retrocessos da democracia e do Estado de Direito, que dificultam um pensamento de longo prazo e um ambiente político compatível com as difíceis mas necessárias medidas a tomar.
Felizmente, não são só más notícias. O recém-publicado “Relatório sobre a Lacuna de Emissões” do PNUMA identifica três oportunidades que não podemos desperdiçar: a quantidade de estímulo económico que está a ser anunciada; a nova vaga de compromissos de neutralidade carbónica; e os resultados surpreendentes de novas tecnologias “limpas”. O estímulo económico deve ser verde, sob pena de nos prender a energias e economias do passado. A nova vaga de compromissos deve ser mais que uma manta de retalhos, com o regresso do multilateralismo tão necessário para resolver uma crise verdadeiramente global. E as tecnologias limpas dão sinais de estarem maduras para implementar em larga escala, canalizando para elas as muitas benesses de que as velhas energias ainda beneficiam.
Ao longo de décadas, as políticas e a falta de visão e liderança foram adiando o problema. Terão de ser as políticas e a política a resolvê-lo. É preciso agir de forma integrada, da mobilidade à agricultura, passando pelo rápido crescimento do setor tecnológico, e fazer refletir no modelo económico o real custo das emissões, da poluição e da destruição de ecossistemas.
Para nos mantermos motivados, é preciso ter narrativas que nos mostrem a tragédia de não agir sem nos tirarem a esperança de resolver a crise climática. É preciso que os objetivos de longo prazo sejam complementados com metas mais próximas, que nos impedem de protelar e dão ânimo para continuar a mudança. E é preciso exigir uma transformação sistémica que inclui todos – governos, empresas, universidades, sociedade civil – e que reparte os custos de acordo com as possibilidades e as responsabilidades.
2020 não foi só o lado mau. A ciência e a inovação resolveram em tempo recorde um problema sem precedentes, provando que o conhecimento e a cooperação são sempre uma aposta melhor do que o isolacionismo, o ódio ou a procura de realidades alternativas. 2021 poderá ser melhor. A escolha está nas nossas mãos, nas nossas carteiras e nos nossos boletins de voto.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico