A capa cinzenta do carro da minha avó
Comprámos uma capa para tapar o carro, mas nunca a usámos. Se fosse a capa da minha avó, de certeza que já teríamos coberto o carro com ela. Deixaria de ser dos mais desleixados da rua, cheio de folhas de Outono coladas no vidro, para ser o mais cuidado e especial da vizinhança.
Há cerca de um ano, arranjámos o dístico do bairro e deixámos a garagem. O dono foi, na altura, informado, tudo cordial, sem lágrimas. Até me disse:
– Cumprimentos ao pai, ao companheiro e felicidades para a bebé.
Fizemos contas e decidimos: o carro vai ficar na rua. Não foi um encolher de ombros. Afeiçoámo-nos ao rodopio da garagem. São vários carros naqueles metros quadrados, uma correria de gente de chaves na mão. Ainda alimentámos, nessa altura, a expectativa de que o dono nos dissuadisse, nos dissesse, insistentemente, que não iríamos arranjar lugar, que os pombos iriam estragar a pintura, que nos iriam roubar o carro, bater nos espelhos, riscar as portas – mas nada. O dono compreendeu e todos os que lá trabalham também. Fomos embora, mas continuamos a ver-nos todos os dias. Amizades de bairro.
Sabia que iria ter saudades da garagem, mas a verdade é que também passei a gostar das nossas novas incursões familiares para encontrar um lugar. Nunca é o mesmo sítio, nunca sabemos se vamos conseguir pôr o carro na nossa rua ou nas travessas à volta. Mas até gosto desses inesperados, de virar para cima e para baixo até descobrir, afinal, um sítio. Acaba por ser uma satisfação. Um troféu. E temos tido sorte, temos conseguido estacionar sempre perto. Nos últimos tempos, porém, isso deixou de acontecer, pouco temos pegado no carro, o que também é uma sorte, se não significasse, por outro lado, as imobilidades da pandemia.
Seja como for, na altura daquela decisão, tomei outra: iria comprar uma capa para tapar o carro. Iria ser a nossa pequena excentricidade fora de moda. Temi que nos embrulhássemos em figuras desajeitadas quando estivéssemos a tentar pô-la, pensei que iríamos ser os maluquinhos da capa cinzenta, que os nossos amigos nos iriam gozar – mas comprei-a. Daquela cor: cinzenta. Mostrei a aquisição em casa, pu-la na mala do carro, mas, até hoje, um ano depois, nunca a usámos. Não percebo.
Percebo, no entanto, porque gosto da ideia de ter uma capa. A minha avó tinha uma. Usava-a para tapar o seu Mini cinzento que estava sempre estacionado à porta de casa, que era tão pequenina como o carro, ali perto do Príncipe Real. A minha memória de infância, construída e só minha, está cheia de coisas que só existiam em Lisboa.
Nessa memória, só em Lisboa é que havia casas tão pequeninas como a dos meus avós, eu dormia na sala – o sofá, que ficava encostado à janela, tornava-se cama. À noite, punha-me a ouvir a rua, Lisboa tinha barulhos diferentes de Guimarães. Para mim, só em Lisboa é que havia pombos a arrulhar nas janelas de manhã. O prédio da minha avó tinha um cheiro que não mudava com os anos e que ainda hoje encontro noutros prédios de Lisboa.
Gosto muito de Guimarães, de onde sou, mas também gosto muito Lisboa, e devo isso a estes cheiros, àquela casa pequenina, à minha avó e ao meu avô, que se chamava Egypton, e que se punha a tocar guitarra portuguesa horas a fio, eu ao lado a tentar perceber como é que ele punha os dedos nas cordas sem olhar para elas. Gosto de Lisboa, se calhar é por isso que às vezes nem me importo de me perder a procurar um lugar para o carro, acabo sempre por encontrar um recanto que nunca tinha visto bem. A mim, basta-me ver bem um prédio para saber se cheira à casa da minha avó.
A minha avó morreu, há cerca de três anos, com 89 anos. Um dia antes do meu aniversário, 17 dias antes de a minha filha nascer. Por duas semanas não pegou na bisneta ao colo. Ela andava em rezas e ansiedades para que corresse tudo bem. A minha filha nasceu na Maternidade Alfredo da Costa, onde ela também teve o meu pai. O meu pai acha que aconteceu tudo no mesmo piso, ou na mesma enfermaria, não sei bem, o meu pai inventa coisas por carinho.
Há uns anos, o meu pai andou a arrumar coisas na casa minúscula da minha avó, livros, louça, roupas. Guardou um cavalinho que nem à neta empresta, diz que é o Rosebud dele. Não me lembrei de lhe perguntar se, naquelas arrumações, tinha encontrado a capa do carro. Gostava de ter ficado com ela. Se fosse a capa da minha avó, de certeza que já a teríamos usado. E o nosso carro deixaria de ser dos mais desleixados da rua, cheio de folhas de Outono coladas no vidro, para ser o mais cuidado e especial da vizinhança. Talvez não passe desta noite, ainda desço as escadas e vou lá pô-la.