Para Macron não há melhor direito humano que o de vender armas
O mundo que se conta a partir do que se diz.
“Não vou condicionar a nossa cooperação em matéria de defesa e em matéria económica a estes desacordos [sobre direitos humanos]”, Emmanuel Macron, Presidente francês
“Prisioneiro das suas contradições”
Na perspectiva de Emmanuel Macron, a defesa e cooperação francesa não podem depender da questão dos direitos humanos. Para a real politik à francesa, uma coisa é uma coisa outra coisa é outra coisa. Aos demais exige-se respeito pelos direitos humanos, reclamam-se ingerências em assuntos internos de outrem, criticam-se apoios a regimes ditatoriais; em causa própria, Emmanuel Macron prefere optar pelo pragmatismo económico e nenhum regime é demasiado pária para ser impedido de receber uma encomenda de armamento francês, desde que tenha dinheiro para pagar. "Não vou condicionar a nossa cooperação em matéria de defesa e em matéria económica a estes desacordos [sobre direitos humanos]”, afirmou esta semana o Presidente francês, que recebeu com pompa e circunstância o seu homólogo egípcio, Abdel Fattah al-Sissi, no Palácio do Eliseu. Como escreveu o Le Monde, na quarta-feira, em editorial, “Macron mostra-se prisioneiro das suas contradições, entre a defesa de direitos ditos universais e a prática de relações bilaterais concebidas com base em interesses militares, económicos, migratórios e antiterroristas”. Alguém que tanto fala da laicidade como base para o Estado, assente na filosofia do iluminismo, rapidamente apaga a luz da razão para alimentar de armas esse mesmo integrismo que tanto quer recuperar para o mundo moderno. Quando numa mão está o livro e no outro a arma, para que mão devem olhar os governantes do Médio Oriente a quem o líder francês dedica o seu proselitismo sobre a importância de caricaturar Maomé como fundamento civilizacional?
Guerra contra o Parlamento
O site Disclose divulgou esta semana a guerra secreta contra a Assembleia Nacional em que o Governo francês está envolvido, depois da divulgação no mês passado de um relatório parlamentar sobre venda de armas, redigido por Jacques Maire, deputado do República em Marcha, partido do Presidente, e Michèle Tabarot, d’Os Republicanos. Segundo uma nota classificada como “confidencial” a que o site teve acesso, o Secretariado Geral da Defesa e da Segurança Nacional (SGDSN) está a trabalhar nos bastidores para enterrar numa gaveta esconsa o documento e assim evitar ser obrigado ao que os deputados nele pedem: transparência. Isto é, os eleitos pelo povo pedem o controlo democrático das exportações de armas francesas, algo que Macron e o seu Governo não se mostram disponíveis para fazer. Dois anos depois da mobilização de organizações não-governamentais e da opinião pública ter levado à criação de uma missão de informação parlamentar sobre as exportações de armas francesas, o Governo Macron procura nos bastidores pôr fim àquilo que publicamente lhe foi exigido, acabar com o que a Amnistia Internacional chamava no mês passado de “opacidade que reina em torno das exportações de armas francesas”. Para o SGDSN, o que o relatório parlamentar recomenda não pode ser aplicado porque entrava a liberdade comercial do Estado e poderá “levar à exclusão da indústria francesa em alguns países”. Mas se comprador e vendedor exigem que o negócio de armas se mantenha secreto não deveria ser essa razão fundamental para um Presidente que tanto defende a laicidade e os valores civilizacionais deixar cair esse negócio? Como diz a Amnistia, “entre as grandes democracias ocidentais exportadoras de armamento, a França é o único país onde o Parlamento não exerce qualquer forma de controlo sobre a venda de armas”.
Muro da vergonha
A 8 de Julho três navios de guerra interceptadores franceses foram exportados para a Arábia Saudita para equipar a marinha militar saudita que há seis anos está envolvida numa guerra no Iémen que se transformou no maior desastre humanitário a nível mundial, de acordo com a ONU: com 24,1 milhões de pessoas, o equivalente a 80% da população, a necessitar de ajuda humanitária e protecção. “Os civis no Iémen não estão a morrer à fome estão a ser mortos à fome pelas partes em conflito”, disse Kamel Jendoubi, presidente do Grupo de Especialistas Eminentes Internacionais e Regionais das Nações Unidas, na semana passada. A França está a ganhar milhares de milhões de euros com um conflito onde os direitos humanos são violados diariamente e onde 233 mil pessoas já morreram, a maioria vítimas indirectas de uma guerra sem fim à vista, segundo a ONU. Como afirmou esta quinta-feira Henrietta Fore, directora executiva da UNICEF, no Iémen a vida é um “pesadelo acordado” para 12 milhões de crianças. A pressão feita por numerosas ONG e muitas vozes da sociedade civil para que a França deixe de alimentar com armas um conflito que está a matar e a estropiar uma população inteira no presente e no futuro (que adultos darão as crianças que sobreviverem?) não tem dado resultado. O mês passado, Murad Subay, pintou um fresco num cruzamento em Paris a denunciar o lucro que o Estado francês está a retirar com a morte generalizada no Iémen, mas é pouco provável que Emmanuel Macron se reveja nesse muro da vergonha e mude a sua política. A Arábia Saudita é o terceiro maior comprador de armas a França e os Emirados Árabes Unidos (que apoiam os separatistas do sul que também combatem as forças do governo apoiadas pelos sauditas) bate recordes nas suas importações de arsenal francês.
“Organização criminosa”
As 25 maiores empresas de venda de armas do mundo viram aumentar o seu negócio em 8,5% em 2019, de acordo com os números divulgados esta semana pelo Instituto Internacional de Investigação para a Paz de Estocolmo (SIPRI). O seu volume de vendas conjunto ascendeu a 361 mil milhões de dólares. Entre essas empresas está a gigante francesa Thales que na terça-feira conseguiu adiar para 23 de Fevereiro o início do julgamento na África do Sul em que está acusada, junto com o ex-Presidente sul-africano Jacob Zuma, de pagar subornos milionários em troca de contratos estatais. Há 17 anos que o ex-chefe de Estado e a multinacional francesa têm conseguido evitar que o caso seja julgado. Na terça-feira, nem Zuma nem a Thales estiveram presentes, só advogados para garantir mais tempo para preparar a defesa. O ex-Presidente (que foi forçado a demitir-se pelo seu próprio partido em 2018) recebia da Thales, segundo a acusação, 500 mil rands por ano (quase 28 mil euros) através do seu antigo conselheiro financeiro, Schabir Shaik (condenado em 2005 a 15 anos de prisão por corrupção), para olear o aparelho do Estado de maneira a dar primazia à empresa francesa nos contratos públicos. Como lembra Terry Crawford-Browne, da organização War Beyond War, no Business Day, a Thales, ainda quando se chamava Thomson CSF e era detida a 100% pelo Estado francês (hoje mantém controlo accionista sobre a Thales), violou o embargo de venda de armas ao regime do apartheid. Não admira o seu comportamento com Zuma, porque não é mais do que “uma organização criminosa em grande escala”, sublinha.