Como se banaliza o Holocausto (Shoá)
A frase de José Rodrigues dos Santos em entrevista recente à RTP induz num tremendo erro e parece ter origem numa interpretação errada do autor de leituras certamente realizadas sobre o Holocausto.
“A certa altura, há alguém que diz: – Eh, pá, estão nos guetos, estão a morrer de fome, não podemos alimentá-los. Se é para morrer, mais vale morrer de uma forma mais humana. E porque não com gás?”
José Rodrigues dos Santos, entrevista à RTP, 18/11/2020
Esta frase, que tem levantado objecções – por boas razões –, pois induz num tremendo erro, parece ter origem numa interpretação errada do autor de leituras certamente realizadas sobre o Holocausto (ou a Shoá). Trata-se de um dos temas mais estudados pela historiografia, lembrado em memórias e testemunhos, bem como representado no cinema e na literatura.
Ora, na muito abundante historiografia sobre a Shoá, tende-se a considerar que a chamada “solução final do problema judaico” (termo dos próprios nazis) procedeu por etapas, num processo em espiral de radicalização de violência imparável. Numa primeira etapa, entre 1933 e Setembro de 1939, o regime nazi isolou os judeus, definiu-os racialmente, proibiu-lhes o exercício de certas profissões, “arianizou” a sua propriedade e expulsou-os dos territórios alemães. Depois, consoante o local e provavelmente devido a decisões dos escalões intermédios nazis, a partir do início da II Guerra Mundial, em regra, o processo que levou ao Holocausto passou por diversas fases: expulsão e primeira deportação, guetização e trabalhos forçados, deportação final e genocídio.
Como exemplo da política de expulsão, refira-se, após a anexação formal ao Reich da Alsácia e a Lorena, a de 24.000 judeus franceses para a futura “zona livre” de Vichy, às mãos de Eichmann. Este último planificara também, em Setembro de 1939, o plano Nisko, de criação de uma “reserva” judaica perto de Lublin, para a qual foram deportados 100.000 judeus, até ao final desse ano. Essa operação fracassou, tal como aconteceria ao plano territorial de Madagascar, abandonado também na primavera de 1941.
A “solução final” estava pronta para ser transformada em realidade genocidária, através de uma primeira “reinstalação” (deportação) e da “guetização”, acompanhada de trabalhos forçados para judeus. Enquanto para alguns responsáveis nazis o gueto judeu era um instrumento para liquidar judeus, para outros tratava-se de um meio de exploração de mão-de-obra escrava. No chamado Governo-Geral da Polónia, o Gauleiter Hans Frank ordenara, desde finais de 1939, a concentração dos judeus num bairro da cidade – Varsóvia ou Cracóvia. Nesses guetos, teve lugar uma primeira “selecção natural” dos prisioneiros, ao morrerem muitos à fome, doença e exaustão física, em especial as crianças. Quanto aos judeus saudáveis, Frank utilizou-os como mão-de-obra escrava, nos Zwangarbeitslager für Juden (ZAL), administrados pela SS.
Em Berlim, o marechal do Reich Hermann Göring ordenou, ao SS Reinhard Heydrich, adjunto do chefe da SS e das polícias alemãs, Heinrich Himmler, que, “de acordo com instruções do Führer”, procedesse aos preparativos “concretos para uma solução geral do problema judaico na zona europeia de influência alemã” tanto no Ocidente como no Oriente. Em 2 de Maio de 1941, o mesmo Göring anunciou um “plano de fome” nos guetos, consistindo na sub-alimentação de 20 a 30 milhões de pessoas da população da URSS, dos quais 3,3 milhões de prisioneiros de guerra soviéticos. Ou seja, a fome foi um instrumento da “solução final do problema judaico” (termo dos próprios nazis), provocada pelos nazis.
Estava em preparação a invasão da URSS, ocorrida em 22 de Junho de 1941, que deu início a uma terceira fase da política nazi. Os grupos móveis (Einsatzgruppen), presentes na Polónia e que seguiam as tropas da Wehrmacht na União Soviética, começaram a matar, a céu aberto (ou Holocausto por armas), resistentes e comissários políticos soviéticos, considerados comunistas e judeus pelos nazis. Até Agosto desse ano, tinham já assassinado 60.000 civis, sobretudo judeus entre os 15 e os 45 anos, mas a partir de então começaram também a matar mulheres, idosos e crianças judeus.
Para fiscalizar a forma como os judeus da Polónia e URSS estavam a ser dizimados, através de um plano que deveria terminar com a morte de todos eles no “espaço vital” a Leste, em final de 1942, Himmler deslocou-se ao terreno. No dia 1 de Agosto de 1941, segundo Martin Gilbert – outros historiadores datam esse episódio no dia 15 –, Himmler assistiu, em Minsk, à execução de cem judeus, pelo Einsatzkommando 8. Teve o “azar”, como veio mais tarde a recordar o seu oficial de ligação, general SS Karl Wolff, “de ficar com o casaco, e julgo que também a cara, sujos dos miolos de uma ou outra das pessoas que foram mortas com um tiro na cabeça”. O chefe supremo da SS terá empalidecido e “agoniado, virou logo costas, cambaleou”, dizendo depois aos homens encarregados dos fuzilamentos que deviam mostrar-se “duros e firmes”.
Laurence Rees, por seu lado, referiu a data de 15 de Agosto para situar esse fuzilamento em Minsk, onde o SS Obergruppenführer Erich von dem Bach-Zelewski, chefe da polícia nazi na Rússia Central, teria dito a Himmler: “Olhe para os olhos dos homens deste comando, como eles estão destroçados e acabados para o resto das suas vidas.” No dia 16 de Agosto, ainda em Minsk, num encontro com Bach-Zelewski, Otto Bradfisch, comandante do Einsatzkommando 8, e Arthur Nebe, comandante do Einsatzgruppe B, Himmler terá sugerido a este último, segundo Martin Gilbert, para encontrar um método “mais humano” de massacre em massa.
Na primeira metade desse mês de Agosto de 1941, Arthur Nebe ordenou a morte de mulheres e crianças judias e, no final da guerra, viria a ser encontrado no seu apartamento em Berlim um filme amador onde se via uma câmara de gás alimentada pelo fumo de escape de um camião. Estava prestes a surgir uma nova política em matéria de massacres de massa pelo gás, em Chelmno, o que aconteceria em início de Dezembro, dando início a uma quarta etapa do Holocausto. Tratou-se da “reinstalação” final, eufemismo nazi para deportação planificada nos mais altos escalões nazis para os outros centros da morte (Belzec, Treblinka, Sobibor, Auschwitz-Birkenau e Majdanek). É dessa forma que deve ser encarada a “forma mais humana de assassínio pelo gás”: isto é, “mais humana” para os assassinos.
Escolhi colocar em causa apenas a frase coloquial apresentada acima, mas desde já lembro que, ao contrário do que é dito na mesma entrevista, não havia piscina em Auschwitz-Birkenau – havia um reservatório em Auschwitz I, mascarado de piscina para os guardas dos campos e elementos da SS – e o bordel era reservado a estes e aos chamados Kapos, presos que colaboravam com os nazis. Deve-se lembrar que Auschwitz, que se tornou num paradigma do Holocausto, era um conjunto de três grandes campos (e respectivos subcampos): um campo de concentração (Auschwitz I); um centro de extermínio (Auschwitz-Birkenau); e um campo de trabalho escravo para judeus, Auschwitz II, ou Buna Monowitz. A enorme maioria dos deportados judeus chegados a Birkenau era logo enviada para as câmaras de gás, com a excepção de uma minoria de jovens saudáveis, “seleccionados” para o trabalho escravo. Estes morriam habitualmente de exaustão ou eram assassinados, ao fim de uns meses, tal como aconteceu aos membros das famílias judaicas checas e ciganas, temporariamente no Familienlager de Birkenau, antes de serem mortos nas câmaras de gás.
Para ler mais
- Browning, Christopher R. The Holocaust as By-product? A critique of Arno Mayer, The Path to Genocide, Canto Editions, 1995
- Bruttmann, Tal, Auschwitz, Paris, La Découverte, coll. Repères: histoire (n.º 647), 2015
- Bruttmann, Tal, Tarricone, Christophe, Les 100 mots de la Shoah, Paris, PUF, éd. Que sais-je, 2016, 2.ª ed. corr., 2018
- Himmler in Minsk, http://www.holocaustresearchproject.org/einsatz/himmlerinminsk.html
- Ingrao, Christian, Croire et Détruire, Les intellectuels dans la machine de guerre SS, Paris, Pluriel, 2010
- Rees, Laurence, The Holocaust. A New History, UK, Viking/Penguin Books/Random Books, 2017
- Wachsmann, Nikolaus, KL, História dos Campos de Concentração Nazis, Lisboa: Dom Quixote, 2015