Valéry Giscard d’Estaing (1926-2020): O primeiro “presidente moderno” da França
O seu legado foi a liberalização da sociedade francesa. A sua política externa foi marcada pelo desígnio de construir a Europa. Terá sido um “reformador incompreendido” cujo destino político ficou inacabado.
O antigo Presidente francês Valéry Giscard d’Estaing morreu na noite de quarta-feira na sequência de “complicações” devidas à covid-19. Tinha 94 anos. Foi um dos mais marcantes políticos franceses da segunda metade do século XX. Emmanuel Macron homenageou-o e qualificou o seu mandato presidencial (1974-1981) como “o septenato que transformou a França”.
Le Monde, em manchete, chama-lhe O primeiro ‘Presidente Moderno’. É normal os obituários serem condescendentes. No caso do Monde, há alguma ironia. Foi dos mais virulentos críticos da sua presidência. E, no editorial, intitulado O reformador incompreendido, faz um balanço do seu legado.
“Em menos de dois anos, baixou a maioridade para os 18 anos, suprimiu as escutas telefónicas, anulou [o controlo estatal da televisão], as mulheres foram promovidas e foi votada a despenalização do aborto, apesar das fortes reticências do seu círculo político. Sete anos mais tarde, o seu projecto de fazer da França ‘uma sociedade liberal avançada’ fracassa, sem possibilidade de retorno.”
O jornalista Georges Valance, seu biógrafo, explicava no Figaro o drama do seu destino político: “Encurralado entre dois destinos gigantescos, a gesta do General [De Gaulle] e a revanche socialista conduzida por Mitterrand, Giscard não ocupa o lugar que merece na história da V República.”
A sua política externa foi marcada pelo desígnio da construção europeia. Graças às excelentes relações com o chanceler alemão Helmut Schmidt, o eixo franco-alemão passou a ser motor da integração. Anglófilo, estabeleceu sólidas relações com Londres e esteve na origem das reuniões do G5, depois G7. Nunca se retirou da política activa e, esgotadas as ambições nacionais, transferiu a sua acção para a Europa. Presidiu à Convenção sobre a reforma das instituições europeias (2001-2004) de onde saiu um projecto de Constituição, chumbado em referendo (2005) por franceses e holandeses. Herdeiro de Jean Monnet e Maurice Schuman, sempre defendeu uma “Europa potência” contra a “Europa espaço”.
Carreiras e traições
Giscard nasceu em 1926, em Koblenz (Alemanha), então ocupada pelos franceses. Aos 18 anos, alistou-se no exército da França Livre e foi condecorado com a Cruz de Ferro por feitos em combate na Alemanha. Figura típica da grande burguesia provincial fez um casamento aristocrático, com Anne-Aymone Sauvage de Brantes.
Acabada a II Guerra Mundial, estudou na Escola Politécnica e na Escola Nacional de Administração (ENA), dois viveiros das elites francesas. Em 1956 foi eleito deputado na circunscrição de Puy de Dôme, um “feudo” familiar.
Instaurada a V República em 1958, torna-se secretário de Estado das Finanças e, depois, ministro das Finanças e Assuntos Económicos. Representa a aliança da direita liberal com os gaullistas. Saído do executivo em 1966, passa a exprimir dúvidas sobre as orientações do general: é o “sim, mas”.
Enfraquecido após o Maio de 68, De Gaulle tenta recuperar a legitimidade e convoca um referendo sobre a descentralização, a que Giscard se opõe. A vitória do “não” provoca a imediata demissão de De Gaulle (Abril 1969). Sucede-lhe Georges Pompidou, que morre em 1974. Valéry Giscard d’Estaing calcula que chegou a sua hora. Começa um jogo de alianças e traições entre ele e um “jovem turco” gaullista: Jacques Chirac.
O candidato favorito era o ex-primeiro-ministro Jacques Chaban-Delmas, um histórico da Resistência. Chirac vai provocar a “deserção” de muitos notáveis gaullistas e isola Chaban, que será eliminado na primeira volta. Na segunda, Giscard bate Mitterrand. Aos 48 anos é o mais jovem Presidente da França.
Sete anos mais tarde, em 1981, será a vez de Chirac provocar a derrota de Giscard e a vitória histórica de Mitterrand. Eliminado na primeira volta, Chirac recusa apoio a Giscard e apela, de facto, ao voto em Mitterrand. Aos velhos gaullistas nada custou abater o político que tinha feito cair De Gaulle. Chirac assumia a liderança da direita.
Os diamantes de Bokassa
O seu septenato foi marcado pela vontade de modernização social. Encalhou no plano económico, tendo subestimado as duas crises petrolíferas da época. Nomeou Chirac primeiro-ministro. Em 1976, entram em rota de colisão. Chirac não quer sofrer o desgaste das crises. Sucede-lhe o economista Raymond Barre, que impõe uma austeridade impopular.
A simbólica “desgraça” de Giscard foram os “diamantes de Bokassa”, o “imperador” da República Central Africana. Em Outubro de 1979, o jornal Le Canard Enchaîné publicou uma história sobre uma oferta de diamantes, que remontaria a 1973. O “caso” acabou em pouco. Os famosos diamantes valiam muito menos do que se imaginava. Mas foram o pretexto para a humilhação e desgaste de Giscard ao longo de dois anos, em especial no Canard e no Monde. Em 2014 uma jornalista do Monde, Raphaelle Bacqué, contou a história num texto significativamente intitulado O dia em que… o Monde escolheu torpedear Giscard.
Valéry Giscard d’Estaing, vulgo VGE, era um bom comunicador. Mas, ao contrário de Mitterrand e Chirac, nunca foi popular. A sua altivez aristocrática não atraía simpatias. Mas teve uma outra faceta: “VGE tinha uma virtude raríssima em política: a permanência das suas convicções políticas”, escreve o biógrafo Valance. “Centrista (no sentido da procura de um grande grupo central), europeu determinado bateu-se toda a vida sob a mesma bandeira.”