O “golpe” amador de Donald Trump
É o mais explosivo legado de Donald Trump. Muito mais significativos do que os 74 milhões de votos que teve – um extraordinário resultado – é outro dado: quatro em cinco eleitores republicanos crêem que houve irregularidade nas eleições.
Um dia, historiadores e jornalistas narrarão o que se passou nos Estados Unidos nas três últimas e dramáticas semanas, que significaram um dos maiores desafios ao sistema constitucional americano. Uma vez mais, as instituições resistiram. Se a simples vitória eleitoral de Donald Trump teria efeitos nocivos, a falsificação do processo eleitoral, pondo em causa as regras democráticas, teria implicações devastadoras.
Três semanas após o voto popular, Trump rende-se à realidade e aceita a transição do poder. Poderá ainda fazer estragos. Se a sua derrota está consumada, permanecem inquietações sobre o futuro.
“De momento, o país parece ter evitado um ruinoso colapso do seu sistema eleitoral”, escreve no New York Times o jornalista Alexander Burns. “Da próxima vez, não é certo que volte a ter sorte.” Apesar de Trump ter falhado na “missão de subverter a eleição, expôs as profundas fendas no edifício da democracia americana e abriu caminho a uma futura disrupção ou desastre”. Revelou um grande amadorismo mas “conseguiu congelar a transição durante quase um mês, perante a submissa indulgência dos republicanos e o medo e a frustração dos democratas.”
A crise teve dois tempos. Antes das eleições, Trump tratou de desqualificar o processo eleitoral falando na “maior fraude da história americana”. O objectivo primário era reduzir ou anular o voto por correspondência, que se previa muito grande em tempo de pandemia. Trump sabia que uma elevada afluência às urnas o desfavorecia. A sua sorte foi selada com a maciça participação eleitoral, a mais alta de sempre e num clima exemplarmente calmo.
A sombra golpista
Trump, como fora anunciado, tinha outra carta na manga. Ainda antes do fim da contagem dos votos, proclamou-se vencedor e denunciou, uma vez mais, a “burla eleitoral”. Não reconhece a vitória do adversário. Começa aqui o capítulo mais grave: o Presidente tenta evitar a certificação dos resultados em estados ganhos por Joe Biden, de forma a mudar a composição do colégio eleitoral. Isto significa, de facto, uma invalidação do voto popular.
O esquema funcionaria assim: os delegados republicanos recusariam validar os resultados, criando um impasse e passando a decisão para as assembleias estaduais: as de maioria republicana indicariam delegados pró-Trump no colégio eleitoral. Abrir-se-ia uma crise constitucional que, em última análise, seria arbitrada no Supremo Tribunal, onde Trump crê ter vantagem na relação de forças.
Há duas interpretações. Na hipótese “benigna”, trata-se de uma manobra estratégica de Trump para começar a reunir as condições para a reconquista da Casa Branca em 2024. O objectivo seria consolidar a sua base eleitoral e garantir o controlo do Partido Republicano. Ao mesmo tempo, reafirmaria a ilegitimidade da próxima Administração Biden preparando-se para boicotar a sua acção por todos os meios.
No campo republicano, Trump dispõe de uma arma: a intimidação. Em 2016, conseguiu lançar uma “OPA hostil” sobre o partido. Foi escolhido contra o establishment republicano. Passou a controlar pessoalmente o seu eleitorado e, dispondo de um núcleo de incondicionais fanatizados, tornou-se no árbitro das primárias: é difícil um candidato republicano obter uma investidura contra Trump. Representantes, senadores e governadores perceberam e tornaram-se obedientes.
No entanto, Trump levou os seus esforços longe demais. No caso do Michigan chegou a convocar para a Casa Branca os dois representantes republicanos numa comissão paritária de certificação. Eles não cederam ao apelo do presidente: “Flip Michigan back to TRUMP” (Devolvam o Michigan a TRUMP). As pressões exercidas sobre os republicanos de outros estados, como a Pensilvânia ou a Georgia, foram rejeitadas por responsáveis republicanos. O secretário de estado da Georgia, Brad Raffensperger, mostrou mais seriedade e coragem do que os senadores do seu partido. De resto, o “golpe” de Trump foi neutralizado pelos juízes dos estados em disputa.
O mais proeminente especialista republicano nas leis eleitorais, Ben Ginsberg, espantou os analistas ao denunciar Trump. “Dentro de alguns meses olharemos para trás e veremos que a estratégia de Trump era um extremo fracasso, que provavelmente não será copiado. Mas nunca o sistema foi submetido a um tal teste de stress.”
Correntemente, a palavra “golpe” é associada a militares. Em Junho, Trump cometeu o erro de tentar utilizar o Exército nas cidades americanas durante os protestos do Black Lives Matter. O secretário das Defesa, Mark Esper, acabou por recuar, sob pressão dos generais. As Forças Armadas americanas têm uma enraizada cultura civilista: não intervêm em política interna.
Na altura, saíram a terreiro figuras como o almirante Mike Mullen, ex-chefe do Estado-Maior Interarmas, ou o general James Mattis, ex-secretário da Defesa do governo Trump, denunciando a tentativa de manipulação política dos militares e a ameaça de os utilizar nas ruas das cidades: “Não posso permanecer em silêncio”, escreveu Mike Mullen, na Atlantic. O chefe do Estado-Maior Interarmas, general Mark Milley, enviou uma directiva a todos os comandos militares sobre a fidelidade à Constituição.
É uma inédita iniciativa, que desafia as interpretações. E, para complicar as coisas, os generais não se calaram. Há dias, enquanto Trump procedia a uma “purga” no Pentágono, instalando homens da sua confiança pessoal, o general Milley aproveitava uma cerimónia no Museu Militar para lançar uma mensagem: “Nós jurámos perante a Constituição. Não jurámos perante nenhum rei ou rainha, um tirano ou um ditador.” O que é que o general está a visar?
Os “homens fortes”
“Quanto ao que está a acontecer agora, penso que é um verdadeiro ataque ao sistema democrático americano e que está a causar que milhões de americanos duvidem do resultado [eleitoral], diz ao New York Times Barbara Pariente, antiga juíza do supremo tribunal da Florida.
É este o mais explosivo legado de Donald Trump. Muito mais significativos do que os 74 milhões de votos que teve – um extraordinário resultado – é outro dado: quatro em cinco eleitores republicanos crêem que houve irregularidade nas eleições.
Comenta Paul Kolb, antigo alto funcionário da CIA: “O tipo de sementes que (Trump) plantou, o tipo de extremismo que estimulou e a rejeição do processo constitucional vão persistir durante muito tempo.” Cabe a Joe Biden desarmadilhar esta potencial bomba-relógio.
E Donald Trump? A historiadora Ruth Ben-Ghiat, estudiosa dos autoritarismos, explica ao Harvard Daily Gazette: “É difícil depor um homem forte, mas quando ele perde o poder sente ‘uma aniquilação psicológica’. Não se consegue imaginar fora do poder. É muito destrutivo.”
Por sorte, revelou-se um amador.