O mar que se escuta nos búzios
Quem nunca encostou um búzio ao ouvido para ouvir o mar? Em Sopros do Mar Antigo, um velho conta a origem desse eco misterioso.
Uma história escrita há mais de 30 anos, quando a autora, Emília Ferreira, andava pelos 20 e poucos. Nela se relata poeticamente a relação entre as marés e a Lua e se dá a conhecer uma sereia que morreu de amor. Para salvar o mar.
“O conto foi escrito cerca de 1984-85 (tinha eu 21-22 anos) e andava a experimentar escrever estórias que podiam ser para crianças ou adultos, mas que tinham uma vontade de explicar o surgimento de alguns fenómenos naturais (no caso, os búzios, que sempre me fascinaram), de algum modo influenciadas por leituras dos filósofos pré-socráticos e por Eliade, que li muito por essa época (a Lua como o primeiro morto, por exemplo)”, recorda ao PÚBLICO via email.
Actualmente directora do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (Lisboa), Emília Ferreira assume que a ideia trabalhada para este conto foi “inspirada num tom de tradição oral, mas sem qualquer base (que tivesse noção disso) em qualquer exemplo concreto de estória”.
Sobre a origem do conto, diz: “Não me lembro exactamente de como a ideia me surgiu, mas tenho uma vaga memória de esta ter sido uma estória construída com alguma simplicidade (não apenas de recursos, mas na ‘facilidade’ da sua lógica interna e do seu ‘surgimento’).” E acrescenta: “O mar e a Lua (como as águas, as árvores, os pássaros, etc.) são importantes para mim, por muitas razões — naturais, poéticas e simbólicas —, e pareceu-me lógica essa abordagem (a sereia vem direitinha dos gregos, claro está!).”
A ilustrar Sopros do Mar Antigo, surge Ivone Ralha, designer gráfica e ilustradora. Um projecto à volta de museus juntou-as no PÚBLICO em 1992. Ainda bem. Depois de uma tentativa frustrada de publicação deste conto, Teresa Noronha, editora da Escola Portuguesa de Moçambique-Centro de Ensino e Língua Portuguesa, aceitou editá-lo.
Ivone Ralha viveu em Moçambique entre 1977 e 1984, onde estudou História, na Universidade Eduardo Mondlane. “Trouxe de lá as cores”, dizem-lhe. Têm razão. As suas filhas, duas, nasceram em Maputo.
Começou a colaboração com a Escola Portuguesa de Moçambique em 2018 e este é o terceiro livro que lhe foi dado a paginar. Em todos, também se ocupou da ilustração. Antes de Sopros do Mar Antigo, foi editado O Pastor de Ventos, com texto de António Cabrita (2019) e destinado ao público juvenil, e O Coelho Que Fugiu da História, de Rogério Manjate (2018).
Não matar a fantasia
Quisemos saber como Ivone Ralha escolhe as imagens que vai desenhar e qual o seu modo de produção: “Nestes três livros para a escola, fiz a paginação também, o que me ajudou a planificar e a decidir. Sei o espaço que tenho disponível e posso distribuir conforme me agrada. Tento manter algum ritmo.”
A ilustradora acrescenta que aproveita as cenas “mais sugestivas” para o seu tipo de desenho. “Gosto de tirar partido das texturas, das cores, dos ambientes…”, descreve ao PÚBLICO por email. E prossegue: “Gosto mais disso do que dos heróis ou das cenas principais. O mais importante já está no texto e acho que não posso matar a fantasia de quem lê. Eu dou uns ambientes… Tento chamar a atenção para coisas em segundo plano, não sei se sempre consigo. Depois hiberno ali de pincelinho na mão, nos ‘bordadinhos’, uma temporada. Pinto dois ou três em simultâneo quando quero manter ambientes de cor...”
A base do seu trabalho é acrílico sobre papel: “Escolho papel com textura tipo tela, gosto do efeito ‘linho’. Depois, posso meter em cima lápis de cera, caneta, carvão, o que me aprouver.”
A seguir, vem a parte técnica final: “Digitalizo e trato no Photoshop e pagino no Indesign. Seguem-se os PDF das provas e emendas, para cá e para lá as vezes que for preciso, preparo para a tipografia, exijo ver as provas e, finalmente, lá dou o ‘imprima-se’. Entrega de chave na mão! Fico em pulgas até receber um e confirmar se está tudo mesmo bem…” E está.
O livro é distribuído pela livraria Snob e está à venda nas livrarias moçambicanas e na própria Escola Portuguesa de Moçambique.
A história começa assim: “Sentados na praia. Dos velhos sobe uma voz. Vai-se erguendo, gorda e branca. Enche a noite. Pára lá em cima, no vidro onde a lua está pregada. Ela branca e gorda. Um velho fala. E diz: — Contaram-me os antigos, no meu tempo de rapaz e é certo que é verdade. Há coisas que levam anos a aprender até serem sabidas pelo coração (…)”
Para ler junto ao mar ou com um búzio por perto.
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