Unhas surrentas de terra e vinho a escorrer pela pele

A Voz do Dão - O diálogo da uva e do vinho foi fotografado a quatro mãos, pelos fotojornalistas Adriano Miranda e Nuno André Ferreira, e será apresentado no decorrer dos encontros Tinto no Branco.

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Nuno André Ferreira
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Nuno André Ferreira
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Nuno André Ferreira

A porta de madeira está entreaberta e a passagem barrada por quatro linhas sobrepostas de garrafões. As cortinas floridas foram recolhidas com um grande nó. Há um fio de bandeirinhas amarelas a pender do tecto e teias de aranha na parede branca suja vigiada por um sereno Sagrado Coração de Jesus emoldurado. “É a adega caseira de uma quinta, outrora gigante e que agora está a renascer. Se se tirasse o pó, podia ser o cenário de uma festa”, comenta Nuno André Ferreira, autor da primeira fotografia de A Voz do Dão - O diálogo da uva e do vinho, livro a quatro mãos — com as de Adriano Miranda, fotojornalista do PÚBLICO — sobre “coisas e pessoas genuínas”, “unhas surrentas de terra” e elementos que perduram e se perpetuam, um ano de histórias de adegas e de tascas que pode muito bem ser o retrato de uma região no seu todo.

Adriano Miranda
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Adriano Miranda

Vamos para o terreno e fotografamos quem trabalha, pensaram os dois fotojornalistas. Um ano junto à terra, através de vinhas, encravadas entre pedras, pinheiros e milho que moldam a paisagem. O ciclo da vinha e da vida. “Andámos pelas capelinhas todas”, diz Adriano Miranda, que optou pelo médio formato para o segundo livro com Nuno André Ferreira, fotojornalista ligado ao Grupo Cofina e à Agência Lusa (o primeiro foi Dever de Memória – da infâmia à esperança sobre o espaço ardido na zona de Viseu nos incêndios de 2017).

Adriano Miranda
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Adriano Miranda

Do lagar de pedra à adega antiga com “paragens demoradas e personagens incríveis”, aponta Adriano ("porque cada paragem é sempre um filme"). E umas boas bebedeiras pelo caminho ("porque ninguém sai da adega sem beber").

Marmitas, cachos de uvas — e o copo — na mão, motores V5, pés que descansam depois de esmagarem as uvas, penedos e neblina, garrafões ao alto e fé em Deus, as formas retorcidas da vinha e as sestas à sua sombra, muita parra, muita uva, muito vinho que alimenta a alma e o coração, as castas e o granito, as rugas na pele e os sulcos na terra, as panelas a fumegar faça chuva, faça sol. “É a realidade que ora enternece, ora choca, ora causa nostalgia, ora revela tensão criadora”, escreve no prefácio Manuel Carvalho, director do PÚBLICO, que depois recua quase um século para comparar estes aos fotógrafos da Casa Alvão que se empenharam em “revelar um Dão romantizado, depurado e idealizado”. “As imagens de Adriano Miranda e de Nuno André Ferreira mostram-nos o Dão autêntico, cru, sem filtros nem preconceitos. Nem tudo é bonito nesse mundo.”

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Nuno Andre´ Ferreira

Passaram muito tempo com as pessoas. Viveram com elas. Beberam com elas. Absorveram esse saber colectivo em que os novos aprendem com os velhos e os velhos aprendem com os novos. “Passava muito tempo com elas e depois percebia que só tinha quatro ou cinco fotos”, recorda Nuno, natural de Leiria, há uns 14 anos em Viseu. Foi-se perdendo nas histórias. “Com o tempo fui percebendo que o vinho são histórias com uma riqueza gigante. O vinho é mesmo assim.”

Não foram com um guião. “Escolhem perder-se”, escreve Jorge Sobrado, vereador da Cultura e Património da câmara de Viseu, a propósito daquele que considera ser “o menos óbvio e o mais necessário dos projectos visuais sobre a região vitivinícola”. “Somos convocados a olhar de frente o Dão anónimo e colectivo — mais que o Dão das marcas. O Dão humano — mais que o Dão industrial. O Dão da rua — mais que o Dão aristocrático e institucional. O Dão anímico e cultural — mais que o Dão tecnológico e neófito.”

Adriano Miranda
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Adriano Miranda

Fotografaram o “genuíno”, insiste Adriano Miranda, os “teimosos” que fazem vinho ainda que percam dinheiro, os que produzem uns garrafões ou milhões de garrafas. “No Dão tens tudo”, diz, pessoas que abrem a porta “com alegria e generosidade”, que nos recebem com “espírito de família”. O mecânico de tractores, o vendedor de fertilizantes, o homem da tasca. “Se o granito falasse, ficávamos toda a noite aqui a ouvir histórias.”

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