El adiós a Dios: “inimigos” abraçaram-se por Maradona

Na Casa Rosada foram horas de lágrimas, acenos e vénias. Emoção, desespero e sorrisos. Camisolas, flores e bandeiras. E violência, demasiada violência. A vida de Maradona foi complexa e a despedida não foi menos. Nem poderia ser, porque era a de El Pibe.

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Jogadores do Nápoles foram todos Maradona LUSA/CIRO FUSCO
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Há coisas certas na vida. O sol nascente, a morte e que adeptos do River Plate e do Boca Juniors precisam de um contexto muito especial para se abraçarem e chorarem juntos. Diego Armando Maradona deu-lhes esse motivo – e talvez só ele fosse capaz de o fazer.

Esta quinta-feira foi dia do adiós a Dios [o adeus a deus] e milhares de argentinos fizeram filas intermináveis para estarem presentes no velório de Maradona. Uns esperaram horas para entrarem na Casa Rosada, palácio presidencial da Argentina que esteve aberto durante quase dez horas, e fizeram-no com sucesso. Outros ficaram de fora. Não deu para todos.

Na Casa Rosada foram cerca de 600 minutos de lágrimas, acenos e vénias. Emoção, desespero e sorrisos. Camisolas, flores e bandeiras. E violência, demasiada violência. A vida de Maradona foi complexa e a despedida não foi menos. Nem tinha de ser, porque era a de El Pibe.

“Isto é muito forte. A energia que se vive aqui arrepia-me. Sinto como se não fosse verdade, como se não tivesse acontecido. Mal consigo andar. Senti o mesmo que quando o meu pai morreu. Estou anestesiado”, explicou à Lusa Fernando Martínez, um dos visitantes do velório.

El Pibe não quereria uma homenagem assim

Na Casa Rosada, em Buenos Aires, a pandemia poderia ter sido, por estranho que pareça, uma aliada das forças policiais. Deu o pretexto ideal para que, em vez de uma cerimónia aberta e sem restrições particulares, pudesse ser montado um restrito circuito. E sabe Deus – ou Maradona, para os amigos – como teria sido este velório sem a nuvem da pandemia a pairar.

O distanciamento social não foi cumprido, longe disso, e um velório desta magnitude chegou a provocar revolta de muitos argentinos que, nos últimos meses, não puderam despedir-se convenientemente dos seus que partiram. Uma incongruência que o Governo argentino desvalorizou.

Para Maradona, abriu-se a excepção. E a adesão foi tremenda. Sensivelmente a meio do velório as filas iam da Plaza de Mayo à Avenida San Juan – um percurso geralmente feito em dez minutos… de autocarro. Com o aproximar da hora de encerramento do velório (que até foi prolongada), a polícia começou a fechar as filas.

Nos muitos que viram escapar-lhes a entrada na fila, a tristeza de perder Maradona uniu-se à revolta por não poderem despedir-se convenientemente e a polícia viu-se obrigada a usar gás lacrimogéneo, disparos de água e balas de borracha para conter a revolta de muitos populares.

Caos instalado, vários feridos e cerimónia cancelada, com a retirada do corpo de Maradona, que certamente desejaria um comportamento diferente dos argentinos.

“Alguma coisa morreu em nós”

No velório propriamente dito as regras foram claras: entrar, olhar, não parar e sair. Qualquer interrupção no passo superior a dois ou três segundos mereceu, de imediato, acção policial para apressar o visitante.

Quase todos vestidos a preceito – Argentina e Boca foram, naturalmente, os mais vistos –, os visitantes não pouparam nas lágrimas. Afinal, o adeus a Maradona não se coaduna com vergonha ou pudor do choro.

E na sala da Casa Rosada lá estava ele. Deitado dentro de uma urna coberta com a bandeira da Argentina. Por cima da bandeira, duas camisolas. As duas camisolas. Da selecção e do “seu” Boca Juniors. Estava como possivelmente idealizou estar quando o dia chegasse.

“Ele não vai morrer nunca, mas alguma coisa morreu em nós. E é isso o que dói”, esforça-se para se expressar Ariel Gândara, sem chorar.

Mais longe, em Itália, o Nápoles jogou. O desafio da Liga Europa frente ao Rjeka teve onze Maradonas no San Paolo, mais os que entraram durante o jogo. Todos foram Maradona, na camisola e no pensamento. Em breve, jogarão sempre perante El Pibe  o San Paolo será o estádio Diego Maradona.

Polémico até a morrer

Se a vida de Maradona teve “virtudes, defeitos, vícios e contradições”, como escreveu Marco Vaza no obituário do PÚBLICO, a morte não podia ser trivial. O comum não se enquadraria em Diego.

A polémica em torno da morte do argentino foi lançada por Matías Morla, agente e advogado de El Pibe, que avançou que houve negligência na assistência médica a Maradona. “É inexplicável que durante 12 horas o meu amigo [Maradona] não tenha tido a atenção médica que devia ter tido, por causa do seu estado de saúde. A ambulância demorou mais de meia hora a chegar o que é uma idiotice criminosa”, acusou.

O agente de Maradona garantiu ainda que a situação “não será esquecida” e vai pedir que seja “investigada até às últimas consequências”. “Diego disse-me que eu sou o soldado dele e para agir sem misericórdia”, concluiu.

A morte de Maradona não foi tratada com o respeito e cuidados necessários, diz Morla, mas o mesmo não pode dizer-se da vida de quem tanto amava o astro argentino.

Televisor desligado para Bilardo

Carlos Bilardo, de 82 anos, trabalhou com Maradona na selecção da Argentina, no Sevilha e no Boca Juniors. Diego era o filho que Bilardo nunca teve. Com uma doença degenerativa em mãos, Bilardo foi protegido pela família e não sabe da morte de El Pibe.

Temendo um agravamento do estado de saúde de Bilardo, os familiares decidiram simular uma avaria na televisão, para evitar que o antigo seleccionador argentino tome conhecimento da morte de Maradona.

Menos sorte teve Alejandro Sabella, outro ex-seleccionador argentino, de 66 anos, cujos problemas cardíacos justificaram o internamento num hospital. “Ele ficou muito afetado com a morte de Maradona. Em princípio, terá alta ainda hoje”, disseram os familiares de Sabella, em declarações à agência EFE.

Nesta quinta-feira, a despedida começou por ser bonita, como Maradona quereria, mas tornou-se um espectáculo de violência, parco em cuidados sanitários. O fim de tarde em Buenos Aires foi feio e mais feio deverá ficar quando chegarem, nos próximos dias, as contas à covid na capital argentina.

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