Controlo do mar sem marinheiros?
A Marinha portuguesa, com os seus meios navais (também aeronavais e subaquáticos), detém um conjunto de qualidades, efectivas e potenciais, que não devem ser desperdiçadas em improvisações custosas e finalmente pouco eficientes.
Não só a história, como também a sociologia, são capazes de reconhecer os marinheiros (hoje, homens e mulheres) como sujeitos portadores de uma verdadeira profissão – evoluindo aliás numa segmentação progressiva desde o ofício –, e não meramente como uma ocupação profissional ou uma vocação, ainda que ditada por alguma ordenação divina ou um sentido simbólico de Pátria.
Vem isto a propósito de mais um passo que estará em vias de ser dado com a aquisição de meios de navegação oceânicos atribuídos à Unidade de Controlo Costeiro da Guarda Nacional Republicana e não à Marinha, alimentando rivalidades estúpidas e menosprezando uma racional contabilização de vantagens e inconvenientes. Mas, sobretudo, ignorando a cultura socio-histórica de cada uma destas instituições e das suas respectivas corporações. Emprego este termo no seu sentido mais rico de corpo de indivíduos que, formados em processos de aprendizagem longos e custosos, desenvolvem ao longo de toda a sua vida útil e de uma carreira profissional devidamente estruturada a actividade (organicamente integrada) que a sociedade e o seu Estado reconhecem ser de necessidade e utilidade essenciais. E por isso lhes paga.
Não se ignoram os fechamentos e auto-centramentos a que um exagerado “espírito de corpo” pode levar, quase sempre face a outros corporativismos (e há-os bastantes entre nós), vistos como concorrentes ou rivais. Mas o tempo dessas disputas entre militares parece ser já coisa do passado, sobretudo depois que se unificaram estruturas de comando conjunto e largas décadas terem decorrido de efectiva cooperação operacional inter-ramos.
Serão então estas tensões provocadas por novos protagonistas mal definidos agindo no seio de forças em ascensão (numérica, orçamental e mediática) no quadro interno, como são as Forças de Segurança ou Policiais e as estruturas de Protecção Civil? Ou serão velhos ressentimentos anti-militares alojados em sectores partidários (talvez mais especialmente à esquerda) que disputam entre si o poder político e para os quais estas oportunidades de “inovação” podem ser rentáveis?
Nas últimas décadas, os espaços marítimos circundantes da Europa do Sul, Magrebe e Próximo Oriente suscitaram a exigência de um controlo marítimo muito mais efectivo e diferenciado do que aquele que as antigas “esquadras” podiam proporcionar. Compreende-se as preocupações da União Europeia nesta matéria. Patrulha, busca e salvamento, controlo aeronaval, interdição militar eventual, combate à pirataria, controlos migratórios, fiscalização e protecção às actividades económicas no mar (de transporte, pesca, exploração dos fundos, etc.), com observância das leis existentes e combate aos tráficos ilícitos, são tarefas exigentes em meios e que implicam elevada integração orgânica e boa cooperação interinstitucional. Mas só grandes países se podem dar ao luxo de possuir Coast Guards organicamente autónomas. Não foi já uma discutível decisão essa constituição da UCC-GNR quando existia, desde há muito, a Polícia Marítima?
A Marinha portuguesa, com os seus meios navais (também aeronavais e subaquáticos), detém um conjunto de qualidades, efectivas e potenciais, que não devem ser desperdiçadas em improvisações custosas e finalmente pouco eficientes.
As críticas que lhe são dirigidas pela natureza algo híbrida da sua instituição – que inclui a Marinha militar, ou Armada, e a Autoridade Marítima Nacional – não atingem o essencial. Aquela circunstância pode parecer um resquício do passado ou um entorse jurídico numa linearidade formal e abstrata. Na realidade, trata-se talvez de uma singularidade – que nomeadamente a distingue do Exército, e também da Força Aérea – mas que corresponde, não só a uma evolução histórica paulatina e prudente, como, muito fundamentalmente, corresponde ao traço de carácter mais forte que marca e define a cultura profissional de cada um dos seus membros: uma identidade dupla, marinheira e militar. E um marinheiro – hoje muito bem qualificado tecnicamente – faz-se fundamentalmente embarcado, na vida de bordo. Não dá para “amadorismos” ou soluções em part-time.
Pode-se discutir se o país deve ter Forças Armadas e se elas devem ou não participar em acções coordenadas no âmbito de alianças externas, sejam atlânticas, europeias, ONUsianas ou outras. Mas, sendo a resposta afirmativa, é preciso fornecer-lhes os meios humanos e materiais para que elas possam cumprir cabalmente as missões atribuídas. O Exército tem sobretudo alimentado em pessoal combatente especializado as participações externas inter-aliadas em diversos cenários da Europa, Médio-Oriente e África. A Força Aérea parece ter sido redimensionada para manter com meios modernos um determinado grau de segurança do espaço aéreo nacional e para poder ligar com rapidez e projectar forças ou outros elementos a média distância, garantindo os apoios logísticos necessários. Quanto à Marinha, que se move mais lentamente e em condições específicas bem conhecidas, deverá competir-lhe o controlo da área marítima reconhecida como sendo de legítima soberania ou interesse nacional (a imensa ZEE atlântica), com os meios navais adequados, sem esquecer as comunidades portuguesas concentradas em diversas partes do mundo.
Apesar das dificuldades da hora, é ainda tempo de remediar decisões inadequadas – como esta e outras – antes que delas se venham a arrepender no futuro.