Planalto com sete mil casos de covid-19 por dia seria “completamente inaceitável”
Epidemiologista Manuel Carmo Gomes afirma que é “absolutamente” essencial fazer descer os números diários de infecção para que os hospitais não fiquem sobrecarregados. E considera que os testes rápidos podem ter um papel fundamental no combate à pandemia.
“Temos absolutamente de descer para níveis muito mais baixos. Se nos mantivermos em níveis de seis mil, sete mil casos por dia, vamos ter um fluxo de hospitalizações que depois conduz a um fluxo de entrada nos cuidados intensivos, que depois conduz a fluxo de óbitos que é inaceitável”, afirma o epidemiologista Manuel Carmo Gomes. Na Hora da Verdade, entrevista PÚBLICO-Rádio Renascença que pode ouvir na integra esta quinta-feira às 23h, assume que o que o preocupa mais nesta fase é a continuação ou não da adesão por parte da população às medidas de contenção da transmissão do SARS-CoV-2. Na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, onde é professor, têm trabalhado os dados e estimam que o R – risco de transmissão do vírus – chegue a 1 no final de Novembro, início de Dezembro.
Foi ouvido pelas ministras da Presidência e da Saúde para falar do estado da pandemia. O que o preocupa mais nesta altura?
Saber se de facto vamos ter, por parte da população, uma contínua adesão às recomendações que são feitas – desde as máscaras, a higienização, a ventilação das salas –, ou se as pessoas por fadiga e por razões profissionais e pela sua vida pessoal vão, à medida que o tempo passa, tendo cada vez menos adesão a estas medidas. Na Faculdade de Ciências vamos medindo os indicadores que nos dão uma ideia do que se vai passar. Temos detectado que o R tem vindo a descer. Pelas nossas contas começou a descer por volta do fim de Outubro. Temos esperança que as medidas que foram adoptadas pelo Governo reforcem ou consolidem esta descida. Se isso for verdade, embora ele desça muito devagarinho, apontamos para que o R atinja 1 algures no fim deste mês, início do mês que vem. São estimativas que neste momento são preliminares, porque, se se recordam da entrevista da directora-geral da Saúde na segunda-feira, foram introduzidos novos casos que não tinham sido ainda contabilizados na base de dados e necessitamos de rever as contas.
Isso traduz-se como em termos de novos casos e consequentemente internamentos e mortalidade?
Quando o R é maior do que 1 e se mantém maior que 1 durante muito tempo, temos crescimento exponencial do número de casos. À medida que o R começa a descer, temos uma desaceleração desse aumento do número de casos.
Mas não é isso que se está a verificar neste momento.
Estou a falar da velocidade com que aumenta. Uma coisa é termos hoje termos mais 500 casos, amanhã mais 600, depois mais 700. Isto é uma aceleração. Outra é termos hoje mais 500, amanhã mais 400 e depois mais 300. Há uma desaceleração. Isto acontece quando o R está a diminuir. Quando o R finalmente atingir 1, temos uma estabilização do número de casos por dia. Atenção que esta estabilização tem de ser medida com uma média de sete dias, porque já se sabe que há muito menos casos ao domingo, segunda e terça do que devia haver e depois há uma grande subida à quarta, quinta e sexta. Agora, nós estamos numa situação extremamente perigosa, porque, se o pico for atingido na ordem dos sete mil casos por dia – nada disto é impossível, pelo contrário –, não podemos de forma nenhuma permanecer nesse nível. Temos absolutamente de descer para níveis muito mais baixos. Se nos mantivermos em níveis de seis mil, sete mil casos por dia, vamos ter um fluxo de hospitalizações que depois conduz a um fluxo de entrada nos cuidados intensivos, que depois conduz a fluxo de óbitos que é inaceitável.
Acha que os confinamentos e estas medidas que foram aprovadas recentemente contribuem para isso?
Absolutamente.
Quando vamos ver os efeitos disso?
As nossas previsões neste momento estão apontar para fim de Novembro, início de Dezembro. Esta previsão tem-se mantido relativamente consistente há vários dias. Agora deixe-me lançar o alerta novamente, porque, quando atingirmos o pico, temos de manter as medidas, porque o R tem de vir para baixo de 1. Se não vier, vamos estar num planalto semelhante àquilo que aconteceu na Primavera/Verão – só na altura eram 300 casos por dia, o que é perfeitamente gerível. Neste caso, o planalto seria com seis mil, sete mil casos por dia, o que é completamente inaceitável. Temos de vir para níveis de incidência diária que sejam aceitáveis.
Que níveis são esses?
Gostaria que ficássemos nos níveis a que assistimos no Verão. Provavelmente temos capacidade para ter um nível um bocadinho mais alto, mas de maneira nenhuma será cinco mil, seis mil, sete mil casos. Isso representa um fluxo de entradas hospitalares que não há país nenhum que aguente.
Do que poderemos estar a falar?
Ruptura das UCI [unidades de Cuidados Intensivos], situações semelhantes àquelas a que assistimos no Norte de Itália, em que os médicos tinham de decidir quem é que podia e não podia ter assistência respiratória nas UCI. Isso é bastante grave.
Concorda com o escalonamento de que se fala de medidas em função da taxa de infecção e de risco entre os 900 e os 240 casos por 100 mil habitantes? Foi nisto que tinha pensado quando defendeu a criação de mapas de risco?
Sim e não. Para já não vejo alternativa. A alternativa é fazer o que fizemos em Março. Mas isso mata a economia e dá cabo da nossa saúde mental. A mim pareceu-me e continua a parecer que esta solução de tomar medidas mais cirúrgicas e agir mais localmente é realmente a solução de equilíbrio. É o caminho que o Governo seguiu.
As pessoas entendem que um município tenha um determinado nível de restrição e o outro lado tenha outro?
Quando nós definimos níveis de risco, considerámos quatro indicadores importantes. Primeiro, a incidência da doença. Esse foi adoptado, se bem que tenham sido adoptados os 14 dias de casos acumulados por 100 mil, que é um indicador que reage muito lentamente a mudanças, é o indicador do ECDC [Centro Europeu de Controlo e Prevenção das Doenças]. Segundo, medir a aceleração do aumento do número de casos. Ver se nas últimas semanas os casos têm vindo a aumentar e com que rapidez estão a aumentar. Terceiro, a vizinhança. Eu acho que um concelho que está amarelo, se está rodeado de concelhos que estão a vermelho, é inevitável que o concelho que está a amarelo vá passar a vermelho. Isto foi tido em conta até certo ponto pelo Governo quando tomou as medidas. Finalmente, e mais difícil de medir e de integrar nestes níveis, saber qual é a natureza dos surtos – porque uma coisa é termos dez ou 15 cadeias de transmissão que estão disseminadas num determinado concelho e das quais só conhecemos metade, outra coisa é termos um surto num lar que afecta dezenas de pessoas, mas porque o concelho tem um pequeno número de habitantes isto imediatamente o põe em cima em termos de indicador. São quatro indicadores aos quais o Governo tomou atenção. Não descurou nenhum, mas deu maior importância a uns do que a outros. É muito difícil explicar às pessoas como é que nós integramos estes indicadores todos. Tem de se arranjar uma solução que seja intuitiva, perceptível, que ganhe a compreensão das pessoas.
Há vários países a avançar no sentido de terem testes rápidos nas farmácias. A Eslováquia quer testar toda a sua população. É esse o caminho que devemos seguir?
Os testes rápidos têm um papel muito importante a desempenhar nesta epidemia. São testes que têm sensibilidade elevada quando a pessoa está com o trato respiratório superior mais infectado, que é também a altura em que a pessoa tem maior capacidade de transmitir. Sabemos que isto acontece cerca de dois a três dias antes de os sintomas aparecerem e depois perdura aproximadamente três, quatro, cinco dias. Temos aqui uma janela que é de aproximadamente uma semana em que as pessoas que transmitem têm uma alta carga viral que é detectada pelos testes rápidos.
Mas concorda com testes generalizados? A todo o país como a Eslováquia?
Penso que isso é muito difícil de implementar em termos logísticos. Mas sabemos que há locais-chave onde, na minha opinião, estes testes poderiam ser implementados com muita vantagem, porque são baratos e rápidos.
Onde?
Lares, por exemplo. Sabemos que os lares têm sido locais de supertransmissão, onde num curto período de tempo aparecem dezenas de pessoas infectadas e também sabemos que normalmente o vírus entra nos lares trazido por pessoas que são assintomáticas. Penso que estas pessoas, que já foram identificadas nesta situação de alto risco, poderiam ser testadas com muita frequência. Bastaria que fossem testadas duas vezes por semana, se fosse possível, com estes testes rápidos, porque teríamos a garantia de que se alguma destas pessoas a meio da semana estivesse numa situação em que estivesse infectada e com alta carga viral, ela seria apanhada pelo teste rápido.
Em relação à reinfecção, temos aparentemente um primeiro caso em Portugal.
De uma maneira geral sabemos que as pessoas que são infectadas com este vírus têm uma resposta imunológica. Inicialmente anticorpos e têm também uma resposta do que chamamos “o outro braço do sistema imunitário”, que são as células T. No entanto, existe uma grande heterogeneidade nesta resposta. Há pessoas que respondem com uma grande concentração de anticorpos e uma excelente resposta das células T, mas há outras que têm uma resposta menos activa. Suspeitamos que tem que ver com a gravidade dos sintomas e da doença que a pessoa teve, mas ainda não percebemos isso. Uma coisa que nós sabemos é que aproximadamente 90% das pessoas respondem da maneira que acabei de descrever. Mas há uma parte que não tem uma resposta imunológica muito eficaz. Esta pequena percentagem de pessoas tem, a meu ver, maior risco de ser reinfectada. A reinfecção é possível.
Mas uma coisa é a ser reinfectado e ter doença, outra é ser reinfectado, ser portador do vírus e poder ou não transmiti-lo. Penso que com este vírus este último cenário é possível. Mesmo depois da vacinação é possível que as pessoas possam ser reinfectadas – quase de certeza que não vão ter doença grave –, mas não podemos excluir totalmente a possibilidade de estas pessoas reinfectadas ainda conseguirem transmitir o vírus.
Certamente, haverá menor probabilidade de o fazerem do que uma pessoa que esteja a ser infectada pela primeira vez. Se há alguma coisa positiva neste vírus, no meio de toda a desgraça e das más surpresas, é que, apesar de tudo, ele não é muito rápido. Quando infecta, leva tempo até gerar doença grave e esse tempo, esses dias, são preciosos para o nosso sistema imunitário, para as células de memória do nosso sistema imunitário responderem e terem tempo de controlar a multiplicação do vírus.