Orçamento do Estado, Património Cultural e Museus: exercício ficcional

O que reserva o OE para 2021 para o sector do património? E o que parece assentar em estimativas, no mínimo, pouco credíveis? Esta segunda-feira a ministra da Cultura vai ao Parlamento para debater, na especialidade, as propostas do Governo.

O ritual repete-se todos os anos: os Governos entregam no Parlamento projectos de Orçamento do Estado (OE) totalmente ininteligíveis para o comum dos cidadãos. E mesmo quem os entende, mormente os deputados, dizem-nos ser intencionalmente dissimulados, porque neles não encontram como se satisfazem numerosas promessas, qual a exacta alocação de despesa de muitas entidades públicas, quais as receitas esperadas e com que fundamentos são elas estimadas. O OE para 2021 não foge à regra, claro, apesar das “notas explicativas” que os ministérios elaboram.

Há novidade, porém, este ano: no caso do sector do Património Cultural e Museus à opacidade e disfarce acrescenta-se o ficcional.

Mas vamos por partes. Antes de tudo o essencial: em 2021, a Cultura representará 0,21% do OE. Ou seja desceu ainda mais relativamente a exercícios de alguns anos atrás, quando chegou a ultrapassar 0,5% e parecia que seguia crescimento paulatino até aos ambicionados 1%. Triste engano, afinal. E não nos digam que é assim porque tem fatalmente de ser assim. Não: seja em termos de OE, seja em termos de PIB, Portugal encontra-se bem posicionado na EU (acima da média) quanto a recursos alocados à Educação e está nos últimos lugares quando à Cultura. É tudo uma questão de opção política e de planeamento consistente. Poupem-nos, pois, por favor, quando afirmam até à náusea acrisolados apegos à Cultura.

Depois há as promessas e boas intenções. Algumas vêm de longe e já aborrecem pelo recurso repetido ao “agora é que vai ser”: mais eficazes sistemas de informação na gestão dos museus, estratégias de acessibilidades e captação de novos públicos, apoio ao artesanato, etc., etc. Outras, sendo também antigas, parecem assentar em novo “trabalho de casa” e permitem ao bom escuteiro olhá-las com maior simpatia, no seu mero enunciado: plano de reabilitação do património cultural e histórico a nível nacional (espera-se que servido por alguma onda do choque da “bazuca europeia”); regime temporário mais favorável de mecenato (mas ainda tão tímido que se duvida tenha realmente mais êxito do que qualquer dos anteriores); intervenções em alguns museus, monumentos e palácios; plano de actuação no âmbito da arqueologia; programa ciência no património cultural.

Mas depois, reflectindo melhor, começam as dúvidas. Cem bolsas de doutoramento e 30 contratos de investigadores em museus, monumentos e palácios, embora poucochinho, é bem-vindo. Mas, não havendo, como não há, reforço orçamental significativo para alargamento ou sequer mera compensação da reforma do pessoal em regime definitivo, pensar-se-á por esta via ir fazendo alastrar também aqui a metástase de precariedade? E quanto ao pomposamente chamado “plano estratégico” da arqueologia, que incluirá o Plano Nacional de Trabalhos Arqueológicos (PNTA), as redes de espólios e o controlo dos impactes negativos da agricultura intensiva: não se deu conta o Ministério da Cultura (MC) do ridículo em dizer que ele será dotado com 200 mil euros (e ainda bem que o diz porque tal não se vê na opacidade do OE)? Como muito bem lembra o Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia (https://starq.info/reivindicacoes-do-starq-para-o-orcamento-de-estado-2021/), só o PNTA tinha tido em 2002, último ano em que funcionou, cerca 800 mil euros! Ficamos elucidados, pois.

Não percamos a fé, dirão alguns. Se do lado daquilo que vem sendo prometido ao longo dos anos, “tudo como dantes, quartel-geral em Abrantes”, talvez a remissão possa vir daquilo que o MC considera ser “uma das principais medidas de política orçamental a implementar em 2021”: a Lotaria do Património, base principal de um putativo “Fundo de Salvaguarda” a instituir.

Admitamos que se trata de boa coisa, a exemplo do que sucede em alguns (poucos) países europeus. Mas é coisa cheia de “mas”. O primeiro é logo a ênfase disparatada que se lhe dá (“uma das principais medidas”!). O segundo é o perigo da lógica de desresponsabilização do Estado, substituindo aquilo que deveria ser investimento provido pelos impostos por rendas contingentes, seja as que resultam de subscrição pública, sejam as que decorrem da acção dos serviços. Do que se prevê para 2021, este é o caso típico da Fundação Côa Parque: redução significativa de OE, em contrapartida de mais receitas resultantes de projectos próprios. Ora, não é preciso ter tirado cursos no Ina [designação por que é conhecida a Direcção-Geral da Qualificação dos Trabalhadores em Funções Públicas] para saber que se trata de um processo vicioso, que a prazo acaba por ter efeitos contrários aos pretendidos. Quando os dirigentes dos serviços públicos interiorizarem a convicção de que os proveitos que obtenham serão correspondidos por equivalentes reduções nos seus orçamentos… Nesse dia deixarão de se preocupar em obter os primeiros, para garantia do mínimo vital proporcionado pelos segundos. Elementar, dir-se-ia.

Depois é preciso colocar esta lotaria em perspectiva. Estima-se que renderá cinco milhões de euros – e o pobre fica impressionado. Mas no último exercício consolidado antes da pandemia, as Finanças tinham ido buscar à força sete milhões de euros de parte dos lucros da “sociedade anónima” (anónima, mas pública, curioso estatuto) Parques de Sintra Montes da Lua. Ou seja, o Governo aceita alienar das políticas nacionais de património os “equipamentos” (assim lhes chama) mais rendíveis e depois… Depois compensa os restantes com jogos de fortuna, ou azar, diríamos, só faltando ver o dia em que seja também convocada a caridade pública.

E não se pense que estamos assim tão longe de aqui chegar. Quando se analisam os números, verifica-se que a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) é dotada em 2021, para actividades, com 51 milhões (o que significa um aumento nominal de 4 milhões em relação a 2020). Mas destes, mais de metade (28 milhões) serão receitas próprias (e destas, 26 milhões de bilheteira e pouco mais). Ora, observando o OE de 2020, rapidamente se conclui que as receitas próprias aí estimadas eram até inferiores. Ou seja, depois de o director-geral do Património Cultural ter informado (Público 23.9.2020) que a receita daquele organismo foi reduzida para menos de um terço da prevista por efeito da pandemia, quer o MC no seu OE para 2021 fazer-nos acreditar que será da mesma ordem de grandeza ou até, pasme-se, um pouco maior? 

Estamos aqui no domínio da ficção pura e dura. E da má, daquela que irá acentuar a falência técnica da DGPC (em relação às Direcções-Regionais de Cultura, o OE para 2021 é um pouco mais realista, porque até admite o decréscimo orçamental em algumas delas), que já nesta altura recorre abundantemente ao “saco azul” das Finanças para suprir os seus “buracos”, nomeadamente em vencimentos de pessoal. 

Em face de tudo isto, que outra coisa fazer senão sorrir, ao pensar em “planos coerentes e estruturados”. Ou em autonomia de gestão dos museus nacionais? Sorrir, sorrir apenas… e começar a fazer figas para que nenhum deles chegue a fechar as portas em 2021, dando uma forcinha ao acima citado director-geral, que já nos confidenciou esperar que tal não suceda. Oxalá tenha razão.

 
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