“Estupro culposo” existe?
A forma como se noticiou a sentença que absolveu o arguido no caso de Mariana Ferrer foi falaciosa, induzindo as pessoas a pensar que o juiz criou este conceito jurídico ou, situação ainda mais distante, que o mesmo foi operacionalizado de forma a atribuir à vítima a culpa pela sua própria vitimização.
Nos últimos dias tenho visto serem partilhadas muitas publicações relativas ao caso de Mariana Ferrer, uma jovem brasileira que recorreu à justiça penal após ter sido violada, em 2018, por André de Camargo Aranha.
A larga maioria das publicações refere que a justiça brasileira criou o termo “estupro culposo”, alegando que o mesmo não existe. A forma como se noticiou a sentença que absolveu o arguido foi falaciosa, induzindo as pessoas a pensar que o juiz criou este conceito jurídico ou, situação ainda mais distante, que o mesmo foi operacionalizado de forma a atribuir à vítima a culpa pela sua própria vitimização.
O arguido vinha acusado do crime de “estupro de vulnerável”, do art.º 217.º-A do Código Penal (CP) Brasileiro, que se reporta à situação em que a vítima não se encontra capaz de consentir e oferecer resistência, por exemplo, por se encontrar sob o efeito de estupefacientes. A defesa alegou que o arguido estava em “erro sobre o tipo” (art.º 20.º do CP Brasileiro, correspondente ao art.º 16.º do CP Português – “erro sobre a factualidade típica”), ou seja, que não sabia que a vítima estava em situação de vulnerabilidade (i.e., drogada).
Esta tese foi acompanhada pelo Ministério Público (MP) que, após ter mudado (magicamente) de promotor durante o processo, pediu, nas alegações finais, a absolvição. Note-se que nada impede que o MP (o mesmo que acusou) mude de posição durante o julgamento, pois que o mesmo está comprometido apenas com a descoberta da verdade material, não sendo um interessado na condenação.
O juiz acolheu a tese da defesa e do MP: o erro em que o arguido incorreu excluiria o dolo, i.e., o arguido teria actuado sem a consciência de estar a praticar actos sexuais com alguém incapaz de consentir naquele momento, facto este que afastaria a “intenção”. Este erro sobre o tipo (ou sobre a factualidade típica) impede a afirmação do dolo, sendo, todavia, possível a punição na forma negligente ou, na terminologia utilizada no Brasil, na forma “culposa” (art.º 20.º do CP Brasileiro e 16.º, n.º 3, do CP Português).
Está, então, explicada a origem do termo estupro culposo. Mas, vejamos, o crime de violação (no Brasil, “estupro”) não é (e bem) punível a título de negligência. Ou seja, não havendo dolo, o arguido também não poderia ser punido na modalidade negligente (no Brasil, dir-se-ia “culposa”), tendo, por isso, que ser absolvido.
O termo “estupro culposo” foi avançado pela defesa (na comunicação social) para explicar ao público em geral que o arguido estava em erro sobre o estado de vulnerabilidade da vítima e que, logo, não teve o ânimo de a violar. Mas não foi utilizado pelo juiz quando absolveu o arguido. Ou seja, concordando-se ou não com o facto de o Tribunal ter sufragado o entendimento de que o arguido não sabia que Mariana estava “dopada”, não se inventou nenhuma aberração jurídica no processo.
Cumpre agora dizer que este esclarecimento tem o único intuito de procurar repor a verdade e o rigor no debate público, valores por vezes subalternizados. Há uma ânsia generalizada do público na internet em sentenciar, sem direito ao contraditório nem direito à prova, substituindo-se aos tribunais e ritualizando um julgamento em praça pública. Entendo que, para formular uma opinião séria e esclarecida, é importante primeiro informarmo-nos, de forma fidedigna, sobre toda a factualidade, de forma a construir uma posição robusta.
Agora, e relativamente ao caso em concreto, todo o eco de indignação online tem fundamento: com provas e testemunhas a favor da vítima e depois da divulgação do vídeo da audiência de julgamento em que aquela experiencia uma vitimização secundária violenta, não restam dúvidas de que o sistema de justiça brasileiro manifestou um machismo estrutural, e adoptou uma posição de culpabilização da vítima. A utilização do conceito jurídico do “erro sobre o tipo” para a absolvição do arguido foi, na minha opinião, claramente enviesada e, sob os auspícios da lei, outro homem branco e rico foi ilibado.
No fim, tudo se reduziu a uma questão de prova: ou a defesa conseguia provar que o arguido não sabia que Mariana estava drogada e, assim, incapaz de resistir (apesar de, tudo indica, ter sido o mesmo a drogá-la), ou a acusação conseguia provar, para além de toda a dúvida razoável, que Mariana estava efectivamente drogada e foi violada. Contra todas as provas apresentadas pela acusação (exame médico-legal que atesta o rompimento do hímen e a existência de esperma do arguido na roupa da vítima, um vídeo de uma câmara de vigilância em que a vítima é conduzida pelo arguido a um camarim privado, depoimentos de testemunhas, etc.), o Tribunal deu como provada a tese da defesa.
Como se sabe, a presunção da inocência e o in dubio pro reo são princípios basilares do processo penal, todavia, neste caso concreto, a esmagadora maioria das provas existentes apontava no sentido da culpabilidade e, além disso, o arguido apresentou, ao longo do processo, diferentes versões dos acontecimentos, mostrando incoerência. Os únicos elementos capazes de lançar alguma dúvida sobre este juízo seriam os exames toxicológicos que não reconheceram álcool nem drogas no sangue de Mariana. Mas mesmo sobre esses, desconhecemos os pormenores. E, além disso, a linguagem corporal da vítima no referido vídeo sugere que a mesma se encontrava sob o efeito de qualquer substância. Por estes motivos, não se afigura compreensível a absolvição.
Ainda sobre o vídeo da audiência de julgamento: a liberdade de expressão dos advogados conhece diversos limites, impostos pelas regras da sua deontologia profissional e pela lei. Perante a utilização de expressões injuriosas e violentas pelo defensor, o juiz que presidiu ao julgamento deveria tê-lo advertido e posteriormente, se necessário, retirado a palavra (em Portugal, tal sucederia ao abrigo do art.º 326.º, al. c) do Código de Processo Penal). Mas não o fez, o que é claramente sintomático da corrupção do sistema de justiça brasileiro, presente igualmente na sociedade daquele país: um machismo fortemente enraizado. Porém, esta ilação não pode ser retirada a todo o custo, descurando o rigor que deve pautar sempre uma análise séria sobre qualquer tópico.