Fotografia
Ainda há quem seja acusado de bruxaria e morto na fogueira, na Papuásia-Nova Guiné
Quando algo inexplicável acontece numa aldeia da Papuásia-Nova Guiné, a primeira suspeita recai sobre um espírito maligno. "Uma multidão enraivecida tortura, muitas vezes até à morte, o acusado num evento que pode atrair centenas de pessoas", descreve ao P3 Kristina Steiner, autora do projecto Sanguma, que retrata os vários intervenientes da caça às bruxas no século XXI.
No seio de várias aldeias remotas da Papuásia-Nova Guiné, a alemã Kristina Steiner conheceu o significado literal do termo "caça às bruxas". Num país onde a esmagadora maioria da população vive em zonas rurais, e onde são falados mais de 800 dialectos, ainda se mantém a crença ancestral de que “por detrás de cada árvore, de cada arbusto, se esconde um fantasma ou um espírito" – e que esses, bons ou maus, "são responsáveis por tudo”. A fotógrafa conta ao P3, por email, que "se algo inexplicável acontece numa aldeia, a primeira suspeita recai sobre um espírito maligno”. E sobre o corpo que supostamente habita. O credo e os seus feiticeiros têm um nome, Sanguma, que é também o título do projecto que desenvolveu nas montanhas do país onde a caça às bruxas é mais do que uma simples metáfora ou força de expressão.
As crenças na magia negra não passariam de uma curiosidade se não dessem origem “a incríveis surtos de violência, sobretudo contra mulheres [acusadas de bruxaria]”. A fotógrafa retratou e entrevistou os “sobreviventes profundamente traumatizados” desses ataques e viu com os seus olhos as armas usadas contra eles; esteve diante das fogueiras onde foram queimados e as covas onde, aqueles que não resistiram à tortura, foram sepultados. “Se algo de mau ou inexplicável ocorre numa aldeia, os indivíduos são acusados de bruxaria ou magia negra.” E quando semelhante acusação é lançada, o seu alvo raramente consegue escapar à violenta fúria que lhe é dirigida. “Não são crimes secretos”, ressalta Steiner. “Uma multidão enraivecida tortura, muitas vezes até à morte, o acusado com ferramentas arcaicas num evento público. Raras são as vezes que alguém acode à vítima e os perpetradores quase nunca são julgados ou condenados.”
Qualquer pessoa pode lançar uma acusação de bruxaria sobre outra a qualquer momento e os motivos podem ser os mais diversos. Na base, afirma a alemã, podem estar sentimentos de inveja, ciúme ou disputas territoriais. “Ser sexualmente expressivo pode atrair uma acusação de bruxaria. Uma acusação é útil também para quem deseja eliminar um rival ou uma esposa indesejada.” Em último caso, os ataques também podem ocorrer por diversão, “para combater o tédio”, afirma, argumentando que os linchamentos se transformam, quase sempre, em eventos que atraem dezenas ou centenas de curiosos.
Mas como se transforma um comum cidadão num sanguma? Kristina partilha uma história que ilustra bem esse processo. “Quando o irmão mais velho de Kia regressou de uma viagem, começou a sentir-se doente. E passados alguns dias, morreu. Como era jovem, as suspeitas de bruxaria começaram a levantar-se entre aqueles que estavam presentes no seu funeral.” Depois de colocarem o corpo na terra, os presentes pediram ao finado um sinal dos céus, uma confirmação de que teria sido vítima de um sanguma. “O pai de uma das mulheres presentes tinha sido, no passado, acusado de bruxaria – por isso, era provável que lhe tivesse transmitido o ‘espírito negro’. Kia lembra-se de ver os olhos dessa mulher ficarem brancos e isso era prova de que a mulher era bruxa e teria causado a morte do seu irmão.” O que se seguiu era, naquele contexto, expectável. “Um grande grupo de convidados do funeral começou a atacá-la imediatamente com paus, pedras e facas de mato. A própria Kia desejou matar aquela mulher e pontapeou-a inúmeras vezes na cabeça – ela era, afinal, a responsável pela morte do irmão.”
A tortura, nestes casos, pode durar horas. “Podem ser colocadas malaguetas trituradas nos olhos das vítimas, podem partir-se braços e pernas, arrancar dentes.” A descrição torna-se muito mais violenta à medida que Kristina discorre sobre o tema. “A tortura só pára quando a multidão se aborrece, quando a vítima é resgatada para fora da aldeia ou, então, quando morre.” As principais vítimas de perseguição são mulheres. “Porque é mais fácil atacar uma mulher do que um homem. Porque eles são mais fortes.” Mas homens e crianças não são imunes.
Quando Justice tinha apenas dois anos, a sua vida mudou para sempre. “Um grande grupo de homens acusou a sua mãe, Leniata Kepari, de ser sanguma.” Quando o grupo veio no seu encalce, o pai de Justice teve de escolher entre salvar a esposa ou a filha. “Ele pegou na criança e fugiu. Leniata foi torturada durante horas numa praça em Mount Hagen – a terceira maior cidade de Papuásia-Nova Guiné – diante de centenas de espectadores.” Não sobreviveu. “No final, foi queimada sobre uma pilha de lixo”, descreve a alemã. Justice foi entregue a um tio, passando a residir noutra aldeia.
Ser filha de sanguma trouxe a Justice, com o tempo, um tipo de atenção indesejada. “Sempre que algo de estranho acontecia na aldeia nascia um rumor. E quando esse se tornou muito forte, as pessoas começaram a acusar a criança pelas mais pequenas coisas.” Cedendo à pressão dos seus pares, o tio de Justice decidiu abdicar da sua guarda. “O pai veio buscá-la e mudaram-se para outra aldeia. Poucos meses depois, um grupo de homens veio buscá-la. Torturaram-na durante horas e só a deixaram quando ficaram cansados.” Justice tinha seis anos quando decorreu o ataque. "Está marcada para morrer.”
Em torno de todo este fenómeno, há quem obtenha dividendos. Mugai é, por exemplo, “um homem de vidro”. Ou seja, “ele consegue ver através das pessoas e consegue afirmar se são ou não sanguma”. Tem nos lábios uma sentença pronta a ser proferida sempre que é consultado. Mas, em caso de dúvida, existe o “teste do rio”, explica a fotógrafa. “Se as pessoas de uma aldeia tiverem dúvidas sobre estarem, ou não, diante de uma bruxa, elas atam e vendam a pessoa em questão e forçam-na a atravessar um grande rio de corrente muito forte. Se a pessoa se afogar, está inocente. Se chegar à outra margem é porque utilizou magia – e isso demonstra que era culpada.”
Actualmente, os crimes em nome de sanguma são diários, refere a fotógrafa alemã. Mas nem sempre foi assim. “No passado não havia tantos incidentes relacionados com bruxaria”, explica. “Se existisse um caso numa aldeia, os mais velhos e sábios reuniam-se e pensavam, em conjunto, sobre quem poderia ser o feiticeiro. Se ‘descobrissem’ quem era, enviavam alguém para matá-lo, secretamente.” Os anciãos garantiram à fotógrafa que antigamente não existiam estas demonstrações de violência públicas. “Esta escalada de violência existe há cinco ou seis anos”, garante. Existe, por isso, uma atmosfera de medo nas aldeias que visitou. “A polícia não é capaz de actuar e as pessoas perdem a confiança no Estado, passam a acreditar que vigora a lei do mais forte.”
Na base do problema, Kristina acredita estar “um sistema educacional fraco, pobre conhecimento científico, o desaparecimento da estrutura familiar e de clã tradicionais, a falta de serviços médicos, uma força policial insuficiente”. O crescimento do desemprego, o aumento de consumo de álcool e drogas entre a população e a disseminação de conteúdos incendiários online "podem estar relacionados com esta escalada de violência", mas admite que o tema é complexo e que não dispõe de respostas. Nem para o fenómeno sociológico em questão, nem para os sanguma. “Não existe nenhuma forma de protecção contra a suspeita ou acusação de bruxaria. Não atrair inveja, no entanto, pode ajudar.”