Tempo para ser, tempo para estar
O que faltou acima de todas as dificuldades foi a dimensão nacional, substituída pelo funil ideológico que transformou ministros em gestores dos serviços públicos, como se não existisse a outra metade do País, que também luta, produz e resiste nos sectores social e privado. Para governar, não chega saber estar, é preciso saber ser!
30 de Outubro de 2020: oito meses depois do início da Pandemia, onde e como estamos? Entre a procura da imunidade de grupo, de que a Suécia foi o exemplo, e a redução da disseminação – achatar a curva, recordam-se? – com confinamentos, travagem da economia e retoma progressiva de acordo com o indicador R0 <1 – uma métrica da difusão da pandemia –, que resultados e que conclusões?
Vive-se o espectro da segunda vaga, com número avassalador de novos contágios, novamente ameaça de colapso dos serviços de saúde e travagem da economia cujo impacto negativo estará insuficientemente apreciado. Que há de novo? Talvez menor percentagem de casos graves necessitando de cuidados intensivos hospitalares, mas casos de indivíduos mais jovens contraindo doença.
Todos parecem encontrar-se na mesma encruzilhada – o que levou o czar da gestão da pandemia na Suécia a afirmar, citado pelo The Times: “Iwould be futile and immoral for a state to deliberately pursue herd immunity (fútil e imoral para um Estado prosseguir deliberadamente a estratégia da imunidade de grupo). O preço foi a maior mortalidade na Suécia que noutros países escandinavos e resultados económicos comparáveis aos da Dinamarca e Noruega, que seguiram a estratégia oposta.
Oito meses e muito conhecimento adquirido depois, incapacidade de uma e outra estratégia dominar a pandemia, que parece seguir impávida e serena o seu caminho pré-determinado pela Biologia na interacção entre vírus e humanos, com o seu custo em vidas e devastação económica. Mas aprendemos coisas importantes: prevenção pelo distanciamento, uso de máscara, combate a ajuntamentos e celebrações, regras de higiene pessoal e pública que são fundamentais.
História repetida, como há cem anos depois da gripe espanhola, também perante uma segunda vaga mais devastadora, enquanto se espera pela vacina. Até lá, temos meios incomparavelmente mais eficazes para reduzir mortalidade, tratar a doença e minorar o sofrimento, mas para controlar e impedir disseminação continuamos a depender de: i) cultura de responsabilidade pessoal e colectiva; ii) política de Verdade e rigor assente na informação científica; iii) exigência pública sobre a governação, também numa dimensão global, ultrapassando egoísmos nacionais, isolacionismo e actuações erráticas. Neste combate pela Humanidade o nosso aliado é a Ciência Biomédica, por isso são preocupantes as derivas anti-Ciência de alguns políticos e movimentos sociais, como as extrapolações excessivas de alguns invocando a Ciência. Há uma fronteira clara entre o que deve ser a responsabilidade da Ciência e dos cientistas e a responsabilidade da Política nas decisões que afectam a nossa vida quotidiana.
Que lições destes oito meses? Primeiro, que numa situação de emergência, sanitária, de segurança ou outra, é ao Estado e aos seus serviços que compete a organização da resposta, a primeira linha do combate. Não é uma questão de esquerda versus direita, mas de um pilar estruturante da organização colectiva e é missão indeclinável do Estado, seja qual for o governo. Segundo, que mais que o tipo de sistema de Saúde, o que tem feito a diferença na qualidade da resposta é a organização da acção e os recursos disponíveis. E se o estado de impreparação dos serviços de Saúde foi um problema global em particular na Europa, há idiossincrasias próprias, diferentes de país para país, que, infelizmente, condicionaram a prontidão e robustez da resposta e a capacidade de uma acção prolongada e duradoura.
A nossa realidade portuguesa foi marcada pelo desinvestimento e cativações de vários governos na Saúde, pela insuficiência dos recursos humanos e pelas carências organizacionais bem conhecidas e que os relatórios internacionais evidenciavam perante silêncios cúmplices. Durante anos preferiu-se a bravata política à acção consequente e, agora, chegou o momento da cobrança! Não se trata de procurar bodes expiatórios – the blame culture é própria da propaganda –, mas de ultrapassar constrangimentos e introduzir mudanças indispensáveis, adequar estratégias aos requisitos da eficácia e contendo danos. Tínhamos à partida a mais baixa taxa de camas de cuidados intensivos na UE, o que significava menos equipas preparadas em número que pudessem fazer face às necessidades; compram-se equipamentos, fazem-se obras, mas não se improvisam equipas estruturadas. Apesar do notável esforço feito, há limites, como aliás tem sido claramente acentuado pelas Ordens profissionais. Depois, a insuficiência de médicos e enfermeiros em número adequado em Portugal e no SNS era claramente notória. Anunciar abertura de concursos é fácil, difícil é assegurar que sejam preenchidos e, sobretudo, perceber as razões porque ficaram vazios e agir em conformidade.
Uma outra carência foi gritante: ausência de uma cadeia de comando abrangente, não politicamente determinada, que tivesse a visão global e accountable na sua responsabilidade pública e onde cada um no seu lugar soubesse exactamente o que tinha que fazer. A escassez de recursos humanos em Saúde Pública era gritante há anos, vejam-se os seus quadros de pessoal especializado desde há anos, e tudo continuou na mesma. Como a incoerência nas medidas e no discurso. Se algo é fundamental numa situação como a que vivemos é o rigor e a coerência na transmissão da informação, é o alicerce da confiança entre dirigentes e o Povo.
As lições da Primavera não foram aprendidas, numa sociedade já cansada e angustiada. O Dia de Finados, com a recordação e homenagem aos entes falecidos, é um hábito enraizado na nossa cultura popular. Compreender-se-á a imposição de restrições à mobilidade, mas compreende-se muito mal a permissividade e incúria perante eventos desportivos, motorizados ou aquáticos, onde a complacência das autoridades chocou pela inércia. Em contraste com esta noite, onde mega-operações stop bloquearam o trânsito de e para a capital, impondo uma lei discutível e cuja constitucionalidade se questionou. Precisávamos disto? Era mesmo necessária esta demonstração de força? Ou, com todo o respeito que me merecem as forças da ordem, será que sub-repticiamente perpassou a necessidade do incremento de contra-ordenações como se sugere no Orçamento do Estado?
De facto, não aprendemos as lições do passado recente. A primeira é que era necessária uma primeira linha do combate eficaz assente nos Centros de Saúde, porque só assim o SNS não paralisaria e, depois, os hospitais de campanha que foram desactivados como se o combate tivesse acabado. Mas faltavam os médicos e os enfermeiros, os meios de diagnóstico imediato, a prontidão de atendimento com capacidade de assistência aos doentes sem os obrigar a ajuntamentos à porta e desde a madrugada e, para isto, não chegam as horas extraordinárias. Nada mudou, por isso os relatos dos hospitais sem capacidade de resposta voltaram a dominar as notícias.
Em segundo lugar, persiste manipulação da informação, singularizando a não exclusividade dos médicos no SNS como factor de inoperância na resposta. Só eles? E os enfermeiros, técnicos, assistentes operacionais, que têm que procurar fazer face aos baixos salários da actividade pública, consumindo-se em esforço e sacrificando lazer, reflexão e prazer, à procura de melhores condições de vida para as suas famílias?
O custo humano e sanitário da pandemia covid-19 não pode ser medido apenas pelo número de contagiados, de internados e, infelizmente, de falecidos por causa da infecção pelo SARS-CoV-2, com que a comunicação social nos bombardeia diariamente. Tem que incluir a omissão de tratamentos necessários, de consultas, rastreios e cirurgias e um cortejo de mortes, algumas porventura preveníveis por intervenção clínica oportuna. Covid-19, a ponta do iceberg que tudo desculpará, mas lá bem no fundo, longe da vista, as doenças cardiovasculares, respiratórias, neoplasias malignas e as doenças neurológicas incapacitantes. Este é o fardo pesado, a factura que ninguém assume!
Por isso, o que falhou não foi o SNS nem os seus profissionais que têm cumprido tantas vezes para além do dever, mas a política seguida durante anos. O ministério situado na João Crisóstomo não foi o Ministério da Saúde do Governo de Portugal, mas esteve como gestor ideológico do Serviço Nacional de Saúde, o qual foi deixado isolado num combate que era colectivo, e que deveria ter mobilizado todos os recursos. Mobilização indispensável perante as carências reais, não por ideologia, mas por necessidade! O ministério primou pela teimosia e pela indiferença e, agora, chegou o tempo da barganha, de informações e contra-informações, sem rumo e azimute na defesa do Bem Comum.
Voltamos a um tempo de exigência, e sobre isso não pode haver contemplação, porque o preço para a inoperância, hesitação e falta de políticas adequadas é demasiado elevado. Precisamos apenas fazer bem o que precisa ser bem feito.
E, de facto, o que faltou acima de todas as dificuldades foi a dimensão nacional, substituída pelo funil ideológico que transformou ministros em gestores dos serviços públicos, como se não existisse a outra metade do País, que também luta, produz e resiste nos sectores social e privado.
Para governar, não chega saber estar, é preciso saber ser!
P.S.: Leio, já depois de completado o texto, que as companhias de seguros de Saúde invocam a excepção de Pandemia para não cobrir os custos do tratamento dos seus beneficiários no sistema privado. Numa situação destas, onde tudo ajudaria a prevenir a sobrecarga dos serviços públicos, não era possível ter resolvido a tempo mais esta dificuldade? Cada um por seu lado, e fé no Altíssimo?