“João Paulino tem um dever histórico de esclarecer a verdade”, diz o advogado do principal assaltante de Tancos
Julgamento dos 23 acusados do processo de Tancos arrancou esta segunda-feira no Palácio da Justiça de Santarém. O suspeito do assalto será um dos primeiros a serem ouvido.
O assaltante de Tancos, João Paulino, será um dos primeiros dos 23 arguidos do julgamento do processo de Tancos a depor perante o colectivo de juízes do Tribunal de Santarém onde, nesta segunda-feira de manhã, alguns advogados assumiram já alguns dos seus argumentos mesmo antes de entrarem na sala de audiências.
“Este é o momento em que João Paulino pretende esclarecer toda a verdade”, disse Carlos Melo Alves, advogado do principal assaltante. “Eu acho – e ele também acha – que há um dever histórico de esclarecer a verdade que ele tem.”
Melo Alves declarou mais uma vez que o Estado português fez um acordo com o ex-fuzileiro no sentido de este não ser responsabilizado pelo furto em troca da entrega do material.
Já no decorrer da sessão no Tribunal de Santarém, onde estão cerca de 60 pessoas, entre arguidos, advogados e jornalistas a assistir à sessão, o advogado de João Paulino tomou a palavra. “Legal ou ilegal – é o que iremos ver neste julgamento –, esse acordo foi aceite por um órgão de polícia criminal [a Polícia Judiciária Militar] e pelo Estado português”, defendeu Melo Alves, garantindo que o seu cliente está arrependido do que fez, razão pela qual desistiu de vender o material de guerra – sobretudo explosivos, lança-granadas e munições –, tendo-o devolvido poucos meses depois do roubo, num primeiro momento, através de um acordo secreto com os militares, e, num segundo momento, há cerca de duas semanas.
Nas declarações iniciais falou ainda o advogado do então porta-voz da Judiciária Militar, Vasco Brazão, que afirmou não acreditar que alguma autoridade judiciária possa ter prometido qualquer espécie de perdão ao líder do assalto. “Porque todos sabiam que isso não era possível”, sublinhou Ricardo Sá Fernandes, para quem a credibilidade das declarações de João Paulino “é zero ou próxima de zero” nesta matéria.
As aproximações de Vasco Brazão aos militares que estavam a negociar a devolução das armas com o ex-fuzileiro, explica-as Sá Fernandes com nunca ninguém ter dito ao seu cliente que Paulino era o cabecilha do assalto: “Ele foi-lhe indicado apenas como sendo um informador, alguém que sabia o paradeiro das armas.”
Além de repudiar a acusação de associação criminosa e tráfico de armas – o antigo investigador-chefe Vasco Brazão nega ter favorecido João Paulino, como consta também do despacho de acusação. Admite apenas a acusação pelo crime de denegação de justiça, por ter a PJM agido contra a determinação da PGR, lembrou Ricardo Sá Fernandes antes de entrar para a sala a abarrotar de arguidos, advogados e jornalistas. Todos os presentes estão de máscara para garantir o distanciamento recomendado num espaço pequeno. O tribunal disponibilizou viseiras para os arguidos falarem sem máscara.
Tal como Vasco Brazão, também o ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes continua a negar ter participado em qualquer tipo de acordo com os assaltantes. “Não se faz justiça à custa do sacrifício de um inocente”, indignou-se o representante legal do antigo governante, Germano Marques da Silva, para quem a Polícia Judiciária se limitou, valendo-se do preconceito existente contra a classe política, a construir uma fábula sobre aquilo que o seu cliente sabia do que se estava a passar.
“É chocante e imoral”, observou, acrescentando que, ao relacionar as tentativas de recuperação, a todo o custo, do material militar roubado com a putativa intenção do ministro e do Governo de com isso apagarem o impacto do incêndio de Pedrógão Grande, o Ministério Público não está senão a tentar provar uma “vantagem política obscena”, assente na morte de dezenas de pessoas.
O ex-ministro de António Costa responde por quatro crimes: denegação de justiça, denegação de justiça e prevaricação em co-autoria, favorecimento pessoal e abuso de poderes.
Além do ex-governante, entre os arguidos, destacam-se os responsáveis da Polícia Judiciária Militar (PJM): o major Vasco Brazão, o major Pinto da Costa e o ex-director-geral desta polícia, coronel Luís Vieira. Na lista de acusados estão também altas patentes da GNR, o coronel Amândio Marques e o coronel Taciano Correia, ambos responsáveis (em diferentes momentos) pela investigação criminal da GNR. E ainda o tenente-coronel Luís Sequeira, chefe da Secção de Informações e Investigação Criminal do Comando Territorial de Faro da GNR.
Associação criminosa e tráfico
Todos os militares neste processo estão acusados de crimes de associação criminosa, tráfico e mediação de armas, falsificação e contrafacção de documentos, denegação de justiça e favorecimento pessoal. Sete exerciam funções na GNR e cinco na PJM. Os mesmos factos são imputados ao então coordenador do Laboratório de Polícia Técnica Científica da Judiciária Militar, que não é militar. Vários manifestaram a intenção de prestar declarações no início deste julgamento, antes de as testemunhas serem chamadas a depor.
Os restantes arguidos são aqueles que directa ou indirectamente terão entrado no assalto. Estes oito civis e um militar (que trabalhou em Tancos) respondem pelos crimes de associação criminosa, tráfico e mediação de armas e, ao contrário dos militares, de terrorismo e tráfico de outras actividades ilícitas. Neste grupo, o principal arguido é João Paulino, ex-fuzileiro que declarou ser autor do assalto.
Do interrogatório a João Paulino, que poderá realizar-se ainda esta segunda-feira, sendo este o primeiro na lista dos acusados pelo Ministério Público, espera-se que explique o que terá estado na base das negociações com a PJM para esta avançar com uma operação paralela à investigação oficial da PJ e recuperar o material de guerra furtado dos Paióis Nacionais de Tancos na noite de 28 para 29 de Junho de 2017 por um grupo alegadamente liderado por Paulino.
O ex-director desta polícia, coronel Luís Vieira, que está entre os principais acusados deste processo e foi o único militar que esteve em prisão preventiva assim que foi constituído arguido, chegou acompanhado dos seus dois advogados, que prometem estar no tribunal para que “seja apurada a verdade material dos factos”.
“A PJM actuou dentro da legalidade”, afirmou Manuel Ferrador. “Um furto dentro de uma instituição militar é da competência da Polícia Judiciária Militar. Houve um conflito de deveres e a PJM entende que agiu dentro da legalidade” das suas competências, disse numa referência ao despacho da então procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, a atribuir a responsabilidade da investigação à Polícia Judiciária (PJ).
Questionado sobre se, perante esse conflito, a ilegalidade estava no despacho da procuradora, Ferrador afirmou: “O senhor coronel Luís Vieira e os outros elementos da PJM entendem que esse despacho é ilegal.”
Marcelo chamado a depor
Num julgamento com sessões agendadas três vezes por semana, todas as semanas até Maio, o Presidente da República foi arrolado como testemunha por Vasco Brazão e o primeiro-ministro pelo seu ex-ministro José Azeredo Lopes. Os dois responderão por escrito, mas Ricardo Sá Fernandes, que representa Brazão, requereu que o depoimento do Presidente fosse presencial.
A esse propósito, o advogado lembrou que o ex-director desta polícia coronel Luís Vieira terá informado o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, do seu desagrado pela forma como decorria a investigação e por esta estar sob o comando da PJ.
O despacho de acusação não menciona o Presidente da República, a não ser quando é referido esse encontro que o chefe de Estado teve no dia 4 de Julho de 2017, seis dias após o furto em Tancos, com altas patentes militares e o coronel Luís Vieira, então director da PJM, nas próprias instalações dos paióis de Tancos.
Confrontado há cerca de um ano, Marcelo Rebelo de Sousa desvalorizou essa troca de palavras como informal e inócua, e negou de forma veemente ter prometido interceder junto da então procuradora-geral da República para esta rever a decisão da atribuição de competências, como queria Luís Vieira, à luz do Código de Justiça Militar.
Para Ricardo Sá Fernandes, o simples facto de essa troca de palavras entre o Presidente e Luís Vieira estar vertida na acusação justifica chamar Marcelo Rebelo de Sousa a depor. “Estranho seria [nestas circunstâncias] se o senhor Presidente não fosse chamado a depor”, afirmou Sá Fernandes, acrescentando que apenas aquilo que o Presidente afirmar em tribunal terá valor de prova.
Sobre essa conversa tida com Marcelo Rebelo de Sousa, Luís Vieira escreveu num documento guardado “para memória futura” que falou insistentemente ao chefe de Estado do seu desagrado e preocupação pelo facto de a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, ter atribuído o inquérito à PJ e não à PJM.
“Marcelo respondeu-me que havia uma dramatização, e que tenho de ter paciência”, refere Luís Vieira nesse documento pessoal, acrescentando que, como o próprio invocou “competências específicas e exclusivas” da PJM na investigação deste caso, “o Presidente acabou por prometer que iria estudar, depois falar com a PGR, enquanto o ministro da Defesa falaria com a sua congénere [ministra da Justiça]”.
“Sem entrar em detalhes”
Embora sem acusar o ex-chefe da Casa Militar da Presidência da República, o Ministério Público (MP) coloca o tenente-general João Cordeiro muito próximo do esquema da recuperação do material de guerra: considera que “a prova existente” resultante dos mais de dois anos de investigação permite “suspeitar que João Cordeiro pudesse estar a acompanhar, de alguma forma, as diligências paralelas” da Polícia Judiciária Militar (PJM), “à margem do Ministério Público e da PJ, e que tivesse conhecimento do acordo que foi efectuado com o autor da subtracção”.
Os magistrados não acusam o tenente-general João Cordeiro de abuso de poder porque, para tal, alegam, apenas dispõem de escutas telefónicas e estas só servem de prova para crimes com penas máximas acima dos três anos, o que não é o caso. Porém, valorizam os contactos próximos mantidos com o director da PJM Luís Vieira, o teor das intercepções telefónicas, as declarações de Vasco Brazão de que o general estava informado do plano e ainda a “postura processual, ao faltar com a verdade no seu depoimento”.
O MP extraiu certidão para o general ser investigado porque entendeu existirem, no depoimento de João Cordeiro, indícios da prática de um crime de falsidade de testemunho.
Nas respostas às perguntas por escrito dos procuradores, o tenente-general negou, por exemplo, ter recebido e-mails do director Luís Vieira. Disse apenas que este o foi mantendo informado, “sem nunca entrar em detalhes”. Além disso, acrescentou: “Nunca por nunca, no entanto, me foi transmitido, mencionado ou dado a transparecer a existência de diligências no sentido de se vir a efectuar um ‘acordo’ para a devolução do armamento.”
No início, uma dívida
A história do assalto a Tancos tem origem numa dívida de mil euros relacionada com tráfico de droga. Além de ter um bar em Ansião, João Paulino traficava droga “à consignação”: entregava estupefacientes a conhecidos seus em vários pontos do país, que, por sua vez, o reembolsavam quando conseguiam revender o produto aos consumidores.
Um desses homens morava em Aveiro. Também conhecido como “Pisca”, Valter Abreu, que também era consumidor de droga, tinha ficado a dever os mil euros ao ex-fuzileiro por conta de uma venda de haxixe. E tinha um sobrinho que prestava serviço em Tancos, como furriel. Um dia, em conversa com ele, apercebeu-se das fracas condições de segurança dos paióis – os militares quase não faziam rondas. E foi assim que “Pisca” teve a ideia.
Conhecendo o interesse do antigo fuzileiro por material militar, achou que podia convencê-lo a perdoar-lhe a dívida em troca destas informações e ainda ganhar algum dinheiro extra. E não se enganou, explica o Ministério Público na acusação: “Face a essa informação, João Paulino entregou-lhe mais haxixe para venda, à consignação. E disse-lhe que queria ‘fazer’ os paióis”, conta o Ministério Público na acusação.
Depois de várias visitas de reconhecimento ao local, na noite de 27 para 28 de Junho de 2017 o dono do bar de Ansião e os seus cúmplices introduziram-se no recinto e, com a ajuda de carrinhos de mão, furtaram o material de guerra, composto sobretudo por munições e explosivos. Não havia armas entre o material, que foi depois carregado numa carrinha, escondido com um cobertor, para o caso de serem abordados pelas autoridades, e mais tarde enterrado no terreno de uma avó de João Paulino.
Todos os arguidos desligaram os telemóveis nessa noite, para não serem localizados pelas antenas de telecomunicações da zona. Entre Ansião, onde se reuniram, e Tancos andaram apenas por estradas nacionais, razão pela qual a passagem dos veículos em que se deslocaram – a carrinha e ainda um automóvel ligeiro – não ficou registada nas portagens.