Comunicar em tempos de crise salva muitas vidas
A gravidade do momento faz com que seja imperativo não falar sobre medicina quem não é perito na área que está a comentar/informar. As pessoas têm de ser informadas por especialistas das diferentes áreas onde está o desafio de saúde
Tenho andado bastante à volta desta questão. Claro que é de uma enorme complexidade e todas as leituras serão sempre redutoras. No limite, a comunicação só existe se houver um receptor e é impossível falar com quem não quer ouvir. Mas vou partilhar algumas reflexões sobre este ponto que é fulcral e sobre o qual estamos a falhar redondamente.
A comunicação está fraca e a falhar em larga medida os seus objectivos. Isto é verdade para os jornais, telejornais, os chamados meios clássicos de comunicação social, mas também estão a falhar os meios paralelos: o Facebook, o YouTube, Instagram, influencers e por aí fora.
Os comentadores políticos — Eixo do Mal, Governo Sombra, Francisco Louçã, Paulo Portas, etc., etc. — têm de perceber que não é altura de eles falarem sobre saúde. Têm de se chegar um bocadinho para o lado, para se ouvir quem tem de ser ouvido. Não têm de desaparecer, têm de dar espaço.
Atenção, que gosto imenso de ouvir falar todas as pessoas/programas que eu nomeei, mas a gravidade do momento faz com que seja imperativo não falar sobre medicina quem não é perito na área que está a comentar/informar. As pessoas têm de ser informadas, diariamente, por especialistas das diferentes áreas onde está o desafio de saúde. Até para que percebam como as diferentes áreas da medicina se tocam, se influenciam e interagem.
O maior exemplo é saúde pública e cuidados intensivos. Duas áreas da medicina que nunca se “falaram” e que estão quase em extremos opostos, mas que agora vão ter de andar lado e lado na interpretação, informação e acção respectiva, a cada momento. Mas há muitas áreas da medicina envolvida, eu não conseguiria e provavelmente nem saberia citar todas...
Os médicos. Os médicos tiveram uma comunicação exemplar na primeira vaga. As pessoas estavam em pânico e os médicos transmitiam calma. Foi muito importante, até para mim, ouvir as pessoas que mais admiro e considero na medicina, a transmitir uma grande dose de tranquilidade que foi oxigénio para a nossa sobrevivência.
Agora têm de mudar a forma. O conteúdo está lá, mas a forma e a dose não é adequada ao momento. Não se pode dizer que a urgência do maior hospital do país está a entrar em colapso e dar a entoação de neutralidade emotiva. Não se pode dizer que 90% dos cuidados intensivos estão ocupados com o tom de que “ainda não está cheio”. Tem de se explicar que em dois meses (Agosto-Outubro) os doentes com covid-19 em cuidados intensivos multiplicaram-se dez vezes, e não temos a capacidade de multiplicar nem por dois neste momento. Isto não é sensacionalismo, é a mais pura das realidades.
A comunicação tem arte, tem treino. Os médicos, por norma, não têm as habilitações necessárias, mas terão de se limar para que as comunicações e passagens de informação não façam as pessoas morrer de sono. É preciso haver uma mistura de vozes de chefia/responsabilidade com vozes de terreno, em que sentimos o cuidar dos doentes nas suas palavras, e, claro, aqui entram inúmeras classes profissionais, das quais destacaria os enfermeiros. À informação, não chega ser verdadeira e válida, tem de passar, tem de entrar na cabeça das pessoas.
Os influencers. Aqui é uma mistura de muita, muita coisa diferente, mas têm de regressar ao momento em que fique bem claro que já não é tempo de fazer publicidade de roupa, é obrigatório informar as pessoas. Têm de usar a sua grande visibilidade não para serem vistos ou ouvidos, mas para replicar as posições e recomendações oficiais e dos peritos. É imperativo que percebam isso. Tem de haver espaço para entretenimento, ouvir o Bruno Nogueira, ver Netflix e tudo o mais, mas é vital que se use uma grande parte do nosso tempo a sermos informados e a informar com informação válida.
Comunicar em tempos de crise salva muitas vidas. É preciso desligar o ruído e construir um canal firme, organizado e forte entre o comunicador, a mensagem e o receptor, que, neste caso, são dez milhões de pessoas, são tudo o que temos na vida.
Comuniquem.