A ignorância é a doença que mais mata
Acreditar com muita força para que a doença se vá embora é como ir discutir com um vulcão. A natureza será sempre superior à espécie humana, e não há nenhuma alternativa ao contorno colectivo e civilizado do obstáculo que nos foi imposto.
A coisa que mais me chocou na minha primeira missão humanitária foi a ignorância. A minha ignorância sobre o mundo real e o poder assassino da ignorância quando instrumentalizada pelo colectivo. Há 11 anos, numa aldeia no norte de Moçambique três voluntários da Cruz Vermelha Moçambicana, foram brutalmente linchados pela população em fúria. Estes voluntários faziam parte de uma campanha de saúde pública pela qualidade da água para consumo e por isso distribuíam pastilhas de cloro, juntamente com a formação adequada, no sentido de combater as gastroenterites, responsáveis por milhões de mortes no continente africano, nomeadamente nas crianças pequenas. Criou-se uma corrente de pensamento por geração espontânea, que acreditava que os voluntários da Cruz Vermelha distribuíam “cólera”, pela semelhança linguística, e não “cloro”, e foi uma matança. Mataram as pessoas que estavam gratuitamente a salvar a vida às suas crianças, por pura ignorância.
O ano passado vivi de perto com estupefacção, na República Democrática do Congo que estava a contas com a segunda maior epidemia de ébola da história, quando um grupo de rebeldes atacou um hospital dos Médicos Sem Fronteiras, alimentados por rumores e desinformação, matando profissionais de saúde, para “libertar” os doentes, propagando o contágio deste vírus que mata até 90% das pessoas que infecta.
São exemplos gritantes, extremos e horrendos que eu sempre tentei compreender à escala da “vontade de acreditar”, mas que eu sempre pensei estar solidificada na iliteracia de quem nunca foi à escola e cujas mentes são moldadas como plasticina, e como tal, qualquer teoria da conspiração tem o poder de se transformar numa brilhante ideia.
O que eu nunca esperei foi ver o mesmo fenómeno a prosperar por pessoas que sabem ler e escrever, e que estão apaixonadas pelos raríssimos (estatisticamente são quase 0%) médicos que são negacionistas, relativistas e conspirativos, e que confundem e baralham verdades e mentiras a seu gosto, à medida que se distanciam da sensatez e da sabedoria.
Eu não vou pôr nomes, porque não quero nem dar publicidade, nem fomentar a agressividade que nos cega a inteligência e a empatia. Mas reitero com a minha força toda, que negar a existência ou a gravidade da pandemia, que negar a eficácia da utilização das máscaras, do distanciamento e da lavagem das mãos, que não compreender que perder o controlo da pandemia é perder o controlo de toda a saúde em Portugal e que eventualmente nos vai levar a um novo longo confinamento, e como tal vão ser co-responsáveis (juntamente com o vírus) pelo colapso do país, e como tal são criminosos que deveriam responder perante a lei, pelas mortes alimentadas pela sua ignorância.
Não usam máscaras e queixam-se das regras que a todos nos defendem. Não querem confinamento, mas contribuem para a propagação do vírus. Querem ver a economia a rolar, mas recusam tudo que nos permitiria fazer deste desafio um mal menor. Querem tudo e o seu contrário. Querem acreditar que a doença não existe.
Acreditar com muita força para que a doença se vá embora é como ir discutir com um vulcão. A natureza será sempre superior à espécie humana, e não há nenhuma alternativa ao contorno colectivo e civilizado do obstáculo que nos foi imposto.
Ignorância sobre a doença é a única coisa que vai matar mais que a própria doença.