A invenção do nevoeiro
Em que está transformada a vida portuguesa? Num cerrado nevoeiro que impede de ver outros caminhos além daquele que diariamente nos aconselham a seguir.
Em todas as esquinas da cidade/ nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos/ nas janelas dos autocarros/ mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos/ de rádio e detergentes/ na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém/ no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar/ da nossa esperança de fuga/ um cartaz denuncia o nosso amor. Quem não se lembra deste poema escrito há sessenta anos pelo escritor cabo-verdiano Daniel Filipe? Tinha o título A invenção do amor (1961). E sendo sobre esse sentimento, o amor, o poema é sobretudo um libelo contra a perseguição que a ditadura fascista fazia a todos quantos infringiam o cânone da altura.
Noutro registo, mas tão opaco como então, é a interrogação que nos devemos colocar nestes tempos: em que está transformada a vida portuguesa? Num cerrado nevoeiro que impede de ver outros caminhos além daquele que diariamente nos aconselham a seguir. Aquilo que antes era diverso está transformado numa espessa camada de nuvens que se abateu sobre as cidades, as vilas e as aldeias, sobre as ruas e as avenidas, que se infiltrou nas próprias casas, nas nossas camas e nos nossos sonhos, senta-se connosco à mesa, impõe aquilo de que se deve falar, leva-nos para os lugares para onde nunca desejámos ir, transformou-se num enorme altifalante. E para aqueles que aspiravam a uma sociedade igualitária, ela aí está, sem votos contra, tal é a leveza da sua matéria. E se alguém, mesmo timidamente, tem a ousadia de recusar o consommé diário é prontamente expulso da lista da sala e lançado para o rol dos excluídos. Cumpriu-se, finalmente, a aspiração de todos quantos tanto fizeram para que o nevoeiro fosse o estado natural da vida sobre a terra: deixámos de saber onde cada um pode ser encontrado.
Vemo-nos e falamo-nos, mas não estamos presentes. Entre nós e eles, o nevoeiro impede que nos toquemos porque essa é a suprema subversão do que vem escrito em todos os manuais. É preciso subir bem alto, ao cume mais alto da montanha, para se perceber a extensão do nevoeiro. Ele cobre toda a terra. Até as mais densas florestas, os rios mais caudalosos, as grutas e as cavernas mais extensas e profundas, os lugares santos e os símbolos profanos. De tudo o nevoeiro se apropriou.
Houve um tempo em que sabíamos que havia o nascente e o poente, a margem direita e a margem esquerda, a Primavera e o Outono, a época das colheitas e a altura de semear. Todos continuam lá, mas o nevoeiro vai fazendo com que nos esqueçamos que eles existem, que já sentimos de que são feitos, que já nos deslumbrámos com as suas cores, que já provámos o seu sabor.
Nessa altura, e não passou assim tanto tempo, falávamos da noite mal dormida, do passeio que estava por calcetar, das filas para uma estreia, da roupa que estava apertada, dos divórcios e dos casamentos, do dinheiro que não havia para trocar de carro, do desemprego e do mau emprego, das acções e dos dividendos, de quem vai ganhar e perder as eleições, do atraso dos transportes e da falta de transportes, da rapariga que fugiu de casa e do velho que foi atropelado.
Hoje ainda há quem fale de tudo isso, quem se recorde de encontrar a vizinha na mercearia, de dar um abraço pela vitória do clube, mas tem de ser a altas horas da noite, nas caves dos prédios, quando o nevoeiro faz uma pausa para se multiplicar, ganhar forças e aumentar o número seguidores. Este foi o nevoeiro que nós inventámos.