Entre Orçamento do Estado e covid-19, ainda cabe mais alguma coisa?
A sociedade no seu todo e os seus representantes políticos terão de tomar as medidas necessárias para travar a desastrosa perda da biodiversidade e a catástrofe climática, mesmo durante estados de calamidade e de emergência que não podem servir de justificação para comprometer o nosso futuro neste planeta comum.
Enquanto notícias sobre o Orçamento do Estado para 2021 e a pandemia de covid-19 enchem os noticiários televisivos e as páginas dos jornais nacionais, um assunto que nos deveria preocupar diariamente tende a ficar esquecido, embora seja justamente esse que merecia um lugar de destaque em todas as edições: as alterações climáticas e a perda de biodiversidade que ameaçam a sobrevida da própria espécie humana, numa época que já se denominou de Antropoceno.
Há quase 50 anos, em 1972, foi publicado o relatório ao Clube de Roma “Os Limites do Crescimento”, onde investigadores do MIT, dedicados à análise de sistemas, desenvolveram um programa informático para analisar o fenómeno do crescimento contínuo a nível mundial, incluindo variáveis como população, produção agrícola, produção industrial, depleção de recursos não renováveis e poluição. Concluíram que, sem mudanças substanciais do sistema económico vigente, os limites do modelo atual seriam atingidos dentro de 100 anos, seguindo-se um colapso abrupto. Já passaram quase 50 anos desde então.
Nos anos 1990, na Universidade de British Columbia, no Canadá, William Rees e o seu aluno de doutoramento Mathis Wackernagel desenvolveram o conceito da pegada ecológica que levou a criação do Global Footprint Network em 2003, baseada no cálculo da área biologicamente produtiva necessária para absorver todas as emissões de carbono e gerar todos os recursos consumidos, somando importações e subtraindo exportações quando calculado por país ou zona geográfica. A nível mundial, a pegada ecológica, atualmente, é de 1,7 Terras, vivendo a humanidade, no seu todo, muito acima daquilo que o planeta pode suportar de forma sustentada.
Os últimos relatórios dos Painéis Intergovernamentais para a Biodiversidade e Serviços de Ecossistemas (IPBES 2019) e para as Alterações Climáticas (IPCC 2018) foram demolidores quanto a situação em que nos encontramos. Desde o primeiro relatório do IPCC em 1990, pouco ou nada se alterou. Estamos a chegar aos alarmantes pontos de viragem (“tipping points”) que se podem tornar pontos de não retorno: aumento da captação de calor devido ao aumento de vapor de água na atmosfera, degelo polar acelerado com perda da capacidade de refletir a luz solar, destabilização do permafrost com libertação de metano (outro potente gás com efeito de estufa), redução da produção agrícola devido à falta de água e perda de solo fértil, instabilidade política em regiões com reatores e armas nucleares.
Torna-se cada vez mais difícil fechar os olhos à catástrofe climática; aos grandes fogos que atingem zonas habitadas, em Portugal, na Austrália, na Costa Oeste do Estados Unidos; aos fogos na Sibéria, fogos na Amazónia e noutras zonas do Brasil, com a condescendência do governo brasileiro; às tempestades, furacões e grandes inundações cada vez mais frequentes e catastróficas, nos Estados Unidos e na América Central, em Moçambique e no Bangladesh.
Mas não é tudo: o lixo que produzimos ameaça afogar-nos. Temos enormes manchas de plástico no pacífico e micro-plásticos em todo o lado, até no fundo do mar. A agropecuária industrial esgota e polui os solos, acaba com os polinizadores, viola cruelmente os direitos animais, e contamina toda a cadeia alimentar humana.
Ao mesmo tempo, o fosso entre pobres e ricos está a aumentar cada vez mais e, em particular, durante momentos de crise como a pandemia atual de covid-19. Em 2018, as 26 pessoas mais ricas do mundo detinham tanta riqueza como a metade mais pobre da população mundial, enquanto as emissões cumulativas de carbono entre 1990 e 2015 dos 1% mais ricos representaram o dobro das emissões dos 50% mais pobres (15% e 7%, respetivamente).
Sem margem para dúvida, todas a medidas económicas a considerar na agenda política para a próxima década deveriam impor a redução imediata de emissões daqueles que poluem mais. E não só: torna-se imprescindível fazer acompanhar de reduções imediatas todas as medidas que possam, durante a sua fase de execução, aumentar temporariamente as emissões. Cada quilómetro de linha férrea construído e cada painel solar instalado, por mais benéficos que possam ser considerados a médio e longo prazo, têm uma pegada ecológica, tanto a nível de emissão de carbono como a nível da utilização de recursos não renováveis e da destruição de biodiversidade. Estes impactos deveriam ser compensados (e até sobrecompensados se quisermos reduzir a emissão de carbono) com medidas de impacto instantâneo que requeriam necessariamente a redução da produção e do consumo, pondo em causa o mantra do crescimento económico infinito no planeta finito.
Embora tenha tido pouca repercussão mediática, a primeira edição do Festival Umundu Lx, que decorreu de 9-17 de outubro, permitiu a mais de uma centena de iniciativas locais e regionais e a milhares de participantes a discussão da problemática da transformação sustentável e o papel que cada um de nós pode ter nesse processo, tendo havido mais de cem eventos presenciais e online. Durante esses nove dias de partilha, comunicação, articulação e mobilização criaram-se espaços para fomentar debates e pensamento crítico em relação aos problemas decorrentes do estilo de vida atual e do sistema que o alimenta. Ao contrário de (mega-) eventos como a “Abertura oficial da EU Green Week 2020” ou a reunião mundial dos “Planetiers”, alimentados por conhecidas estrelas da comunicação, da política e do mundo empresarial e apoiados por grandes marcas, o objetivo do Festival Umundu Lx foi tornar-nos a todos agentes da mudança para um paradigma mais sustentável, resiliente e regenerador.
No entanto, para além da responsabilidade individual e coletiva de reduzir a pegada ecológica, a sociedade no seu todo e os seus representantes políticos terão de tomar as medidas necessárias para travar a desastrosa perda da biodiversidade e a catástrofe climática, mesmo durante estados de calamidade e de emergência que não podem servir de justificação para comprometer o nosso futuro neste planeta comum.
Médico e activista, membro da Rede para o Decrescimento e da equipa organizadora do Festival Umundu Lx 2020
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico