O tronco nu do senhor Presidente
Não precisamos, nem queremos, ver o Presidente rodeado de guarda de honra entre encenações marciais e coreografias a exaltar a pátria; queremos apenas que o Presidente não apareça de tronco nu.
A imagem não é novidade. Já víramos o Presidente de tronco nu a banhos nos rios do interior, ou, ainda com maior regularidade, nas praias da linha de Cascais. Até agora, porém, não víramos ainda Marcelo expor o peito no habitual recato de uma intervenção de enfermagem, daquelas que exigem salas reservadas, cortinas e discrição. O Presidente decidiu, porém, quebrar essa convenção de privacidade e expôs-se a ser vacinado contra a gripe. Talvez com a intenção de promover a vacina ou de provar que a campanha decorre com normalidade. Seguramente sem a intenção de criar mais uma daquelas imagens que por tanto dessacralizarem o poder acabam por o trivializar. O Presidente fez mal em tornar o momento da sua vacina um acto oficial destinado a ser visto por todos.
E fez mal porque, para lá do óbvio significado político do gesto, a exposição do seu corpo nu é um excesso que atenta ao bom gosto. Se o Presidente continua a querer ser o Sidónio Pais dos nossos tempos, o Presidente-rei amado pelo povo por ser igual ao povo, e se essa intenção funciona na maior parte das vezes como uma cola afectiva ente as elites do poder e os cidadãos comuns, este episódio é falhado, porque não parece natural, nem é natural. Porque, ou a vacina que o Presidente tomou é especial e exige cuidados especiais, ou, que se saiba, basta abrir a camisa e mostrar o braço para que possa ser ministrada. A menos que haja por aí uma explicação que escape à lógica, o Presidente mostrou-se assim, porque quis.
Ninguém sabe se Marcelo ganha ou perde capital eleitoral com a exposição gratuita do seu tronco. Talvez ganhe nuns estratos do eleitorado que apreciam a forma como um homem superiormente culto pode agir como um homem normal. Mas haverá quem se incomode com a exibição da sua privacidade. O que é certo e seguro é que a função presidencial se desgasta com estes gestos. E não é por moralismo: é pela dimensão simbólica que é inerente às funções do chefe de Estado. Se a democracia na era da Internet invadiu as esferas do poder para o ridicularizar através da demagogia ou do discurso populista, quem o exerce não pode alimentar essa estratégia de banalização. O poder democrático não deve dispensar a sua dignidade, nem a majestade que merece o papel de representar a soberania popular. Não precisamos, nem queremos, ver o Presidente rodeado de guarda de honra entre encenações marciais e coreografias a exaltar a pátria; queremos apenas que o Presidente não apareça de tronco nu.