A minha floresta ao lado da VCI
A minha floresta não é floresta nenhuma, mas aquilo a que as pessoas da cidade podem recorrer para ter uma dose diária de verde, sem ter de viajar quilómetros para chegar a um local onde, no equilíbrio entre natureza e homem, a primeira tenha ainda alguma coisa a dizer.
A minha floresta tem hora marcada, tem caminhos demarcados, caminhantes de todos os dias e aulas de krav maga. A minha floresta tem sobreiros, castanheiros, pinheiros, bichos vários, das pegas às processionárias, e até uma queda de água. A minha floresta é abrigo para famílias, namorados, um ocasional sem-abrigo e, de quando em vez, sessões de bruxaria. Na minha floresta há estações do ano como em todas, com folhas caídas no Outono certo e flores a florescer quando manda a natureza. Mas também tem homens com máquinas e ancinhos que, por vezes, baralham isto tudo.
A minha floresta, como já devem ter entendido, não é floresta nenhuma, mas um jardim público que é aquilo a que as pessoas da cidade podem recorrer para ter uma dose diária de verde, sem ter de viajar quilómetros para sair do urbano, ultrapassar o suburbano e chegar a um local onde, no equilíbrio entre natureza e homem, a primeira tenha ainda alguma coisa a dizer. Terapia altamente recomendável, mesmo que estas florestas tenham tendência para fechar durante as pandemias, o que não acontece com as florestas reais.
A minha dose de bucolismo mora ali, mesmo ao lado da Via de Cintura Interna do Porto, numa das principais saídas da cidade e chama-se Parque do Covelo. Tem parque infantil relvado, uma quinta em ruínas com a sua capela privativa e bancos para os mais velhos passarem a tarde, como muitos jardins. Mas também tem um espaço onde, retirando os arruamentos e as intervenções dos jardineiros, a natureza parece ter sido mais ou menos deixada à sua sorte. Não, não é uma floresta, mas anda lá suficientemente perto para, com jeito e alguma capacidade introspectiva, conseguirmos encontrar aqueles bocadinhos de serenidade em que, sentados na relva, ou sobre a caruma, aninhados entre dois blocos de granito, de olhos postos nas ramadas, os ouvidos sintonizados para que o vento se sobreponha ao trânsito, conseguimos transportar-nos para alguns desses espaços ancestrais, bem incrustados na nossa memória.
Com um pouco mais de verde e terra húmida, estou de regresso à Portela do Homem, serra do Gerês, em cima de uma montada imaginária onde chocalha a minha espada de cavaleiro medieval. Do outro lado do monte, entre trechos mais densos de vegetação e descampados, nas fraldas dos Cornos da Fonte Fria, Pitões das Júnias, sigo o percurso de quem, a salto, teve de fugir para não lutar numa guerra odiosa em outras matas, bem mais quentes. Mais a sul, em terras de Arouca, serra da Freita, volto a mirar a frecha da Mizarela, onde todo o dramatismo me faz pensar em suevos, godos e visigodos, gente assim, com nomes de encher a boca. E se vos contasse dos condes e condessas, reis e marqueses que vi passar pela serra de Sintra ou daquela dama de branco, certamente febril, que um dia entrevi a vaguear pela mata do Buçaco...
Deitado no Covelo, terreno que, durante o Cerco do Porto, liberais e absolutistas disputaram palmo a palmo, posso regressar às florestas da minha infância, onde o gosto pela história me fez povoá-las com os tempos que já não posso conhecer. É sobretudo essa marca de intemporalidade, que faz da floresta espaço natural para qualquer período histórico, que transforma a floresta na melhor casa para os meus sonhos. Mesmo aqui, na quinta do Covelo, paredes-meias com a VCI, posso fugir ao meu tempo e piscar o olho à eternidade.