O futuro em debate: a cidade pós-covid-19

A curto prazo, como já temos verificado, nota-se uma redução significativa da pressão na cidade, de que a diminuição do trânsito é apenas um exemplo. Pelo perigo de contágio nos transportes públicos, é esperado um aumento nos meios de deslocação mais sustentáveis, como as bicicletas eléctricas.

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Nelson Garrido

Todos sabemos que não vamos continuar a viver fechados e isolados. Mas como será a cidade pós-covid-19? Ao longo da nossa história assistimos a profundas mudanças ao nível do desenho urbano e arquitectónico decorrentes de diversas pandemias. Vários momentos de crise sanitária influenciaram directamente a arquitectura, dando origem a ruas mais largas, à abertura de janelas para melhor ventilação, a melhor iluminação, a casas caiadas (a cal era um bom desinfectante), a redes de águas tratadas e a redes de esgotos, à valorização de logradouros e a outras medidas que permitiram a melhoria das nossas cidades, tornando-as menos insalubres, mais higiénicas e bastante mais cómodas.

Neste momento, apesar de estarmos ainda numa fase de análise do impacto desta pandemia, duas perspectivas extremas podem ser consideradas para a cidade. A primeira, associada a um cenário pessimista, mostra-nos uma cidade cada vez mais isolada, segregada, onde o medo de contágio leva a que as pessoas se fechem nas suas casas. E é nesse espaço privado que vamos procurar a nossa auto-suficiência, sendo a importância do espaço público diminuta. As interacções sociais e os eventos culturais são reduzidos ao mínimo. A acção social é mais reduzida, sobretudo a que recorre ao trabalho de voluntários, como o apoio aos sem-abrigo, aos idosos em lares e doentes em hospitais. Esta é uma visão um pouco assustadora, em que não existe partilha de recursos (cada um trata de si), onde a depressão se pode instalar, com as desigualdades sociais a serem ainda mais acentuadas.

A segunda perspectiva, mais optimista, é aquela em que a pandemia é vista como uma oportunidade para corrigir alguns males da cidade pós-moderna. Para percebermos a importância da relação com a natureza, da optimização dos recursos, da proximidade aos outros e da partilha comunitária. O homem é um animal social e, salvaguardadas as questões de segurança, as pessoas continuam a querer estar umas com as outras. Fisicamente, a cidade pode não mudar, mas pode mudar a forma como nela vivemos.

A curto prazo, como já temos verificado, nota-se uma redução significativa da pressão na cidade, de que a diminuição do trânsito é apenas um exemplo. Pelo perigo de contágio nos transportes públicos, é esperado um aumento nos meios de deslocação mais sustentáveis, como as bicicletas eléctricas. O turismo de massas reduziu-se de forma drástica e, em muitas zonas, os habitantes locais voltaram a recuperar os seus espaços públicos, outrora sobrelotados por turistas. Muitos alojamentos de curta duração, em boa hora reabilitados após anos de abandono (quando se encontravam devolutos ou em ruínas), passarão para longa duração. Há um reforço do comércio de proximidade, em detrimento da ida a centros comerciais. As pessoas vivem mais as suas ruas, acabando por lhes dar mais vida. Teremos assim uma cidade mais preocupada com os seus habitantes do que com os seus visitantes, corrigindo-se uma inversão de prioridades a que estávamos a assistir nos últimos anos.

No que se refere a espaços de escritório, é bastante provável que muitas empresas, sobretudo na área dos serviços, tendo percebido que os seus colaboradores podem trabalhar a partir de casa, pelo menos uma parte do tempo, venham a reduzir de forma gradual as suas necessidades de espaço.

Quanto à habitação, a qualidade e o conforto da nossa casa passou a ser uma prioridade, bem como as nossas exigências e necessidades. O que antes era um local que usávamos sobretudo à noite e aos fins-de-semana, com o teletrabalho passou a ser um local onde estamos a maior parte do tempo. Isso leva a que tenhamos de repensar as funções dos vários espaços de que dispomos no interior das nossas habitações, por forma a torná-los mais funcionais, acolhedores e versáteis. E a pensar também em formas de tornar as nossas casas mais agradáveis: a nível de áreas verdes e jardins (para quem tem essa possibilidade), de coberturas acessíveis, de iluminação e ventilação natural, de varandas e terraços, etc.

Isto surge em contracorrente com muitos dos empreendimentos urbanos, nos quais oferecer espaços ao ar livre tem vindo a ser negligenciado, visando aproveitar ao máximo o pouco espaço existente e evitando ao máximo espaços comuns. Numa época de construção desenfreada como a que estávamos a viver na era pré-covid-19, muitas vezes eram os arquitectos que lutavam contra a maré quando confrontados com áreas exteriores cada vez mais reduzidas tendo em vista a maximização dos lucros dos promotores imobiliários. No pós-covid, é natural que se tenda a privilegiar habitações mais flexíveis, numa lógica minimalista, com menos objectos e móveis, pois a diminuição até ao essencial traz mais amplitude ao espaço e aumenta as áreas de vivência e de circulação das pessoas.

A cidade em que vivemos ou a que estamos a regressar pode ser vista com outros olhos. As ruas continuarão as mesmas, mas a nossa percepção poderá ser diferente. Podemos aproveitar estes tempos conturbados em que vivemos para reequacionar os locais que habitamos, o nosso modo de vida, os nossos relacionamentos, focando-nos no essencial. Talvez o mundo precisasse mesmo de desacelerar. Nesta fase, simplificar a nossa vida, tornando-a mais leve, menos agitada, mais prática e mais atenta aos outros, parece ser uma prioridade. As plataformas digitais não vão substituir o contacto humano, a falta que sentimos das pessoas e da interacção com elas, porque a nossa verdadeira qualidade de vida mede-se pela qualidade das nossas relações com os outros.

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