Da negligência das palavras à (des)lealdade institucional
Qual elefante numa loja de porcelana, o incómodo do ministro da Educação é óbvio: como explicar à população portuguesa, sequiosa do regresso dos nossos jovens à normalidade da vida escolar, que esse regresso é (também) ameaçado, nalgumas zonas do país, entre as quais Lisboa, pela (quase total) inexistência de candidatos às funções docentes?
No dia 30 de setembro, em entrevista à revista Visão, pode ler-se:
“[…] Interrogado sobre a falta de professores e o arranque do ano letivo com turmas sem vários docentes, Tiago Brandão Rodrigues diz que 'a substituição dos professores é um sistema muito oleado’. 'Conseguimos substituir os professores com relativa celeridade. Todas as semanas correm reservas de recrutamento que substituem os professores que eventualmente estejam num sistema de proteção por baixa médica ou que pertençam aos grupos de risco’, explica. 'Sabemos que as necessidades que temos de professores e a oferta disponível são uma luva e uma mão que não encaixam perfeitamente’, admite porém.
Acerca de um caso concreto, na Escola Rainha Dona Amélia, em Lisboa, onde algumas turmas arrancaram o ano com falta de professores em seis disciplinas, o ministro é perentório: mais do que falta de diligência, houve ‘negligência’. 'A diretora da escola foi negligente na substituição [dos professores] e não pediu aquilo a que tinha direito. E os serviços do Ministério da Educação contactaram a diretora para entender o que tinha acontecido. As pessoas erram, nós entendemos, mas a escola não fez o trabalho que devia ter feito’, afirma. […]"
Muitas serão as questões de ordem ética que tais palavras, proferidas pelo mais alto responsável da Educação, suscitam junto de muitos de nós. Tremendo, ou mesmo irrevogável [1], é o estrago produzido. Depois de ditas, as palavras, cuidadosa ou negligentemente escolhidas, deitam por terra qualquer hipótese de redenção. A verdade, essa, parece ficar absoluta e liminarmente secundarizada.
Fazendo um verdadeiro esforço de contenção e de objetividade, considero que urge esclarecer o seguinte, para que não restem quaisquer dúvidas:
A falta de professores na Escola Secundária Rainha Dona Amélia (ESRDA) é um facto que persiste, à data de hoje, e que seguramente não resulta de eventual falha, a ter acontecido, da atual diretora. Importa esclarecer que existe um problema de fundo no sistema educativo português; um problema que não data, apenas, da anterior legislatura, mas que tem sido negligenciado de forma sistemática por mais do que um titular da pasta da Educação. Qual elefante numa loja de porcelana, o incómodo do ministro da Educação é óbvio: como explicar à população portuguesa, sequiosa do regresso dos nossos jovens à normalidade da vida escolar, que esse regresso é (também) ameaçado, nalgumas zonas do país, entre as quais Lisboa, pela (quase total) inexistência de candidatos às funções docentes?
É disto evidência a recente publicitação da 4.ª Reserva de Recrutamento, disponível no sítio da Direção-Geral da Administração Escolar [DGAE] – dos nove horários pedidos pela diretora da ESRDA, apenas um terá sido preenchido...
Na “máquina oleada” do Ministério da Educação falta a matéria-prima sem a qual o sistema educativo entra em falência: os professores. Assobiar para o lado e fingir que tudo corre sobre rodas, assumir que as falhas são humanas e da gestão de quem está no terreno, é não só desleal, como preocupante: todos sabemos que não será de um ano para o outro que se repõem os quadros docentes nas escolas. Há que repensar a carreira desde o seu início. Por que razão não são os cursos de ensino atrativos para os candidatos ao ensino superior? O que tem sido feito para dignificar a carreira docente de modo a torná-la, como deveria ser, estimulante e apelativa, de difícil acesso, até? Uma carreira a que só os melhores pudessem aspirar… Estamos muito longe de tudo isso, infelizmente.
Tal como noutros tempos, a política parece ser a de dividir para reinar. Os diretores são elogiados quando convém e descartados à primeira oportunidade. Os professores, de tão maltratados, começam a acreditar que a solução é desistir, ou fazer por merecer os maus tratos. Os pais querem acreditar nas escolas, mas abrem-se brechas de insegurança, pois a confiança não é cega nem inabalável. Muitos alunos continuam, e mais ainda continuarão no futuro próximo, sem professor(es).
À gritante falta de soluções, soma-se o silêncio dos inocentes. Todos nós.
[1] Programa Irrevogável, Visão
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico