Criminalização dos graffiti em Portugal: dois passos atrás do tempo
Esta medida é um erro que terá custos adicionais para os contribuintes e poderá abrir mais uma ferida numa sociedade que enfrenta uma das piores crises económicas e sociais de sempre. Trata-se de um erro económico, de um erro social e, acima de tudo, de um erro político.
Escrever no espaço público sempre foi uma pulsão do ser humano. Desde os escritos de Pompeia ao graffiti nascido nos muros de Filadélfia, houve um longo caminho percorrido. O que nós hoje conhecemos como graffiti expande-se como uma das formas de expressão da cultura hip hop na cidade de Nova Iorque pelas mãos de jovens despreviligiados que procuraram tornar-se visíveis numa cidade que os relegava económica, social, política e territorialmente, tal como o sociólogo Richard Lachmann analisou nos anos 80. O New York Times concedeu uma visibilidade mediática ao fenómeno.
Esta prática ganhou contornos artísticos, tendo chegado a vários pontos do globo, onde jovens começaram a escrever os seus nomes fictícios (tags) em formas mais ou menos elaboradas, com dimensões e estilos variados. Falamos de uma prática transnacional e glocal, assumindo distintos arranjos locais em contextos urbanos.
Procurei entender os efeitos das políticas públicas face a esta prática através da pesquisa que realizei em Lisboa e Barcelona (2005-2011). A cidade de Barcelona despoletou um processo de criminalização do graffiti, aplicando duras sanções legais através da lei municipal para “fomentar e garantir a convivência cívica no espaço público” (2006). A aprovação da lei tem raízes no debate sobre o conceito de civismo que se iniciou por altura da realização dos Jogos Olímpicos na cidade. As práticas denominadas “incívicas” são identificadas, entre as quais se incluem pintar graffiti e andar de skate. As medidas políticas aplicadas implicaram a limpeza dos murais reconhecidos como exemplares da arte pública com elevada qualidade artística e tiveram como consequência o aumento das chamadas “missões” de ataque ao sistema, que consistiam em iniciativas para pintar os comboios e o metro de Barcelona.
A Câmara Municipal de Lisboa, liderada por António Costa (2007-2015), tinha outra visão deste fenómeno. Os profissionais do Departamento de Património Cultural conheciam esta prática, o seu potencial para o campo artístico e cultural e acompanhavam os resultados negativos de uma política de criminalização do graffiti em Barcelona. Não seriam alheios aos efeitos nefastos da política de guerra ao graffiti em Nova Iorque, que conheceu os seus anos mais terríveis com Rudolph Giuliani. Provavelmente, o executivo da CML estava consciente de como tal guerra ao graffiti resultou numa grave crise urbana em Nova Iorque, como Joe Austin argutamente nos explicou. A lógica bélica de confronto apenas alimentou ainda mais a guerra, com os impostos dos cidadãos nova-iorquinos a pagar uma fatura alta pela limpeza de peças de graffiti (com a expansão de empresas especializadas) e a perseguição policial aos jovens, custando-lhes, por vezes, a vida.
A Câmara Municipal de Lisboa enveredou por uma política alternativa, criando a Galeria de Arte Urbana, cujo trabalho intenso com a comunidade permitiu criar espaços expositivos e específicos para pintura livre nas ruas da cidade. Os resultados desta política projetaram a cidade no circuito internacional de arte urbana, o qual inclui hoje artistas consagrados como Banksy e Vhils, com impactos na economia local. O exemplo de Lisboa serviu de mote para encontros internacionais e como inspiração para políticas públicas urbanas. O trabalho próximo com os writters permitiu gerar espaços de reconhecimento artístico e simultaneamente poupar os impostos dos contribuintes numa guerra cega de limpeza e higienização do espaço público.
Vemos agora o Governo de António Costa anunciar a pretensão de criminalizar a prática do graffiti, fazendo tábua rasa das experiências internacionais e mesmo do bom exemplo recente da Câmara Municipal de Lisboa. A senhora ministra da Justiça pretende dar dois passos atrás com esta proposta de criminalização. A justificação passa pelo aumento das inscrições nos comboios durante o período de confinamento, assim como pelo valor que se tem despendido na limpeza dos mesmos. Propõe-se assim uma solução legal de criminalização que apenas nos vai custar mais impostos, não oferecendo qualquer garantia de sucesso na eliminação das inscrições.
“Jovens não vêm uma porta, nem uma janela aberta” para o futuro, lê-se numa reportagem de Joana Gorjão Henriques sobre os jovens em Portugal no período da pandemia. Nesta peça podemos aceder a breves retratos dos jovens na atualidade: muitos completaram longos percursos de formação, trabalham em condições de grande precariedade laboral, encontram-se economicamente dependentes dos pais e/ou de outros familiares e ficaram privados das fulcrais sociabilidades com os amigos.
O Governo em funções está a olhar pouco para esta realidade. Sabemos que vários países da Europa têm trabalhado no sentido de criar políticas públicas específicas de apoio aos jovens no contexto da crise covid-19. É surpreendente que, em Portugal, as primeiras medidas que vão afetar especificamente os jovens se centrem na criminalização das suas práticas artísticas no espaço público, que tantas vezes reforçam sociabilidades, agora mais importantes do que nunca.
Por um lado, esta intenção revela desconhecimento da história das políticas públicas face ao graffiti em contextos urbanos, a qual nos indica claramente que a criminalização é uma estratégia que não elimina o graffiti do espaço público, implicando custos económicos e sociais. Por outro, dá um péssimo sinal político aos jovens e à sociedade. Esta medida é um erro que terá custos adicionais para os contribuintes e poderá abrir mais uma ferida numa sociedade que enfrenta uma das piores crises económicas e sociais de sempre. Trata-se de um erro económico, de um erro social e, acima de tudo, de um erro político.