Como entrou o coronavírus em Portugal? Com variante vinda de Itália, que circulou sem controlo
Variante do SARS-Cov-2, com origem na Lombardia, circulou de forma descontrolada no Norte e Centro de Portugal. Esta variante só não se espalhou para o Sul do país devido “às medidas fortíssimas” de saúde pública adoptadas.
O arranque da epidemia de covid-19 em Portugal foi marcado pela “disseminação maciça de uma variante do vírus SARS-Cov-2 caracterizada por uma mutação específica no seu principal antigénio, com origem em Itália e que causou pelo menos 3800 infecções em Portugal, especialmente no Norte do país”, revelou esta segunda-feira, durante a conferência de imprensa sobre a situação da pandemia em Portugal, o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales.
A origem da variante genética está associada à região da Lombardia, no Norte de Itália.
Estas são as conclusões “mais recentes” do estudo da diversidade genética do novo coronavírus SARS-Cov-2 em Portugal, um projecto de investigação de âmbito nacional coordenado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA).
O coordenador do projecto, João Paulo Gomes, que participou na conferência de imprensa, revelou, por sua vez, que se trata “de um estudo que está em fase de conclusão”, sendo que os resultados finais serão apresentados dentro de duas ou três semanas.
“Pudemos constatar que o arranque da pandemia começou com a introdução de uma variante genética vinda da região da Lombardia e que terá entrado em Portugal por volta do dia 20 de Fevereiro, na região Norte/Centro, na zona industrial, e que se terá disseminado de uma forma não-passível de ser detectada pelas autoridades de saúde pública durante eventualmente dez dias”.
“Isto terá originado umas quantas cadeias de transmissão que depois foram crescendo e, pelas nossas estimativas, a meio de Abril terão originado cerca de 3800 casos de covid-19. Ou seja, um em cada quatro casos de covid-19 em Portugal, por volta do dia 9/10 de Abril, terão sido causados por esta variante genética muito específica”, acrescentou.
O investigador salientou ainda que, “apesar de ter tido um espalhamento maciço na região Norte e Centro, foram muito raros os casos em que essa variante foi encontrada na região do Alentejo e Sul, o que se deveu à tomada de medidas muito atempadas de saúde pública”. “Estamos a falar da segunda quinzena de Março, com o encerramento de escolas, restaurantes, fronteiras e isso estrangulou a disseminação maciça desta variante genética para o resto do país e ela praticamente desapareceu”, notou.
Analisadas 1785 sequências do genoma do Sars-Cov-2
À Lusa, o investigador João Paulo Gomes explica que o estudo já analisou 1785 sequências do genoma do novo coronavírus e revela que “o início da pandemia em Portugal se caracterizou pela disseminação maciça de uma variante do Sars-Cov-2 com uma mutação específica na proteína Spike”, que tem sido objecto de investigação e o principal foco no desenvolvimento de vacinas por ser responsável pela ligação do vírus às células humanas, permitindo a infecção.
Esta variante D839Y do Sars-Cov-2 terá entrado em Portugal “por volta do dia 20 de Fevereiro, associada a umas viagens a Itália, especificamente à região da Lombardia”, acrescentou. “Terá circulado de uma forma um bocadinho descontrolada, ou pelo menos não detectada nessas zonas do país, e terá originado um espalhamento maciço e uma série de cadeias de transmissão antes ainda de os primeiros casos terem sido reportados em Portugal”, adiantou.
Os primeiros casos de covid-19 foram reportados no dia 2 de Março, um associado ao Hospital de Santo António e outro ao Hospital de São João, no Porto, mas não estão ligados à D839Y. “Portanto, isto começou muito antes, não temos dúvidas”, disse o investigador do INSA.
Apesar da identificação desta variante genética em 11 distritos, esta “só não se espalhou” para o Sul do país devido “às medidas fortíssimas, muito rigorosas” de saúde pública adoptadas, “inclusive a cerca sanitária em Ovar, que criou uma espécie de estrangulamento à sua propagação original”, explicou.
“Durante a fase exponencial da pandemia em Portugal, que basicamente foi em Março e nos primeiros dias de Abril, ela [a variante] chegou a corresponder a 33% dos casos em determinados dias, 3% de todos os casos tinham esta mutação, e em dados cumulativos, nós calculamos que em 9 ou 10 de Abril, esta mutação estivesse presente em cerca de 4000 pessoas com covid-19”, salientou.
Para o investigador, este pode ser “um óptimo modelo” para perceber como tudo começou, como a infecção se espalha e “o quão importantes são algumas medidas tomadas na hora certa”, com João Paulo Gomes a considerar ainda que se as medidas tivessem “sido um pouco antecipadas teriam resultado melhor ainda”, mas na altura não havia dados que as justificassem.
“Agora, com estes modelos e com estes resultados, sabemos que, de facto, uns dias antes, se calhar ter-se-iam evitado muitas cadeias de transmissão, muitos internamentos, muitas infecções no geral”, conclui, sublinhando que “este tipo de análise retrospectiva, feito a uma escala sem precedentes em Portugal, pode ser utilizado como trunfo de combate em situações futuras, seja numa segunda vaga de covid-19, seja em outras eventuais epidemias”.
Os resultados finais do estudo, que serão apresentados nas próximas semanas, “traduzem-se na apresentação do número de introduções durante o mês de Março do novo coronavírus em Portugal, a sua cronologia, a sua origem, o facto de terem originado ou não cadeias de transmissão e o enquadramento que podemos fazer neste cenário com as medidas que foram tomadas em termos de saúde pública e que hoje sabemos que foram eficazes”, destacou ainda João Paulo Gomes na conferência de imprensa.
O estudo, financiado no âmbito da primeira edição do programa de apoio Research4Covid, conta com a participação de mais de 60 hospitais/laboratórios de todo o país.