Cem anos de lutas femininas e feministas em Portugal: o exemplo das pioneiras

Da implementação da República à Revolução dos Cravos, várias associações femininas e feministas lutaram pelos direitos das mulheres. Durante o Estado Novo, este ativismo foi silenciado, mas as suas protagonistas continuaram a associar-se em prol da democracia. O vanguardismo e o mérito das ações de algumas destas mulheres do século XX vêm sendo reconhecidos. Mas são ainda muitos os percursos esquecidos em arquivos dispersos e por abrir.

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Lisboa, 25 de maio de 1925. Um navio transatlântico parte para Nova Iorque. Entre os passageiros está a médica ginecologista Adelaide Cabete (1867-1935), fundadora, na capital, do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP), a organização feminista mais duradoura no século XX (1914-1947), em Portugal. Ao terceiro dia de navegação conhece uma viscondessa a quem as ideias feministas causam “irritação” e “enjoo”. Habituada a comentários depreciativos, Adelaide Cabete esclarece que se bate por “igualdades justas e humanas”, mas o argumento não convence. Em Nova Iorque, no bulício das despedidas entre tripulantes, a viscondessa vem ter com ela, aflita. Não tem permissão para sair do navio. No passaporte português não consta a licença do marido para se ausentar do país, conforme exigido pela legislação. Assim, só tem duas alternativas: regressar no mesmo navio para Lisboa ou deixar-se levar para “uma espécie de prisão” onde eram alojados os “duvidosos” que chegavam a Nova Iorque, aí esperando que o marido a viesse resgatar. “Um verdadeiro horror”, descreve Adelaide Cabete num artigo publicado alguns anos depois (em 1928) na Alma Feminina, órgão de propaganda da associação que dirige. Por que razão a passageira era tratada como “mala à espera que o dono viesse requisitá-la”? A circunstância leva a viscondessa a reconhecer que o feminismo tinha afinal “carradas de razão”.

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Adelaide Cabete, presidente da direção do CNMP entre 1914 e 1935. Fotografia publicada em Portugal Feminino (Setembro de 1931) Biblioteca Nacional de Portugal

Nas primeiras décadas do século XX, as ativistas do CNMP lamentam-se dos discursos antifeministas que escutam recorrentemente. Queixam-se de perder mais tempo a explicar o que o feminismo não é do que a enunciar o que defendem. Adelaide Cabete, viúva, e com passaporte diplomático, desembarcou tranquila na baía de Nova Iorque e seguiu para Washington, onde participou em representação do Governo português no congresso do Conselho Internacional das Mulheres, organização criada em 1888 naquela cidade, e a que pertencia o CNMP, bem como dezenas de outros conselhos do mundo inteiro.

As teses defendidas no encontro inspiram Adelaide Cabete para a luta pelos direitos políticos, cívicos, económicos, educacionais e laborais das mulheres em Portugal. Regressadas aos seus países, as ativistas prosseguem trocando correspondência, partilhando livros e órgãos de propaganda. Ou seja, a “marcha” pela emancipação das portuguesas inscrevia-se na “marcha” pela emancipação das mulheres no mundo. A organização feminista dirigida por Cabete mantinha uma relação dialogante com organizações congéneres. O Conselho Nacional das Mulheres Francesas (fundado em Paris, em 1901) teve uma influência na criação do CNMP, pelos laços de amizade que existiam entre várias ativistas. A francesa Ghénia Avril de Sainte-Croix (1855-1939), presidente deste conselho entre 1922 e 1932, era considerada “sincera amiga de Portugal, de cujo ‘conselho’ é madrinha”.

Fora da Europa, o conselho presidido por Adelaide Cabete mantinha múltiplos contactos, nomeadamente com Bertha Lutz (1894-1976), presidente da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, e com Paulina Luisi (1875-1950), fundadora do Conselho Nacional das Mulheres do Uruguai (criado em 1916).

Trinta e três anos de ação feminista

Na primeira metade do século XX, as dirigentes e militantes do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (bem como de outras associações femininas) pertenciam quase todas a uma elite. Eram médicas, enfermeiras, farmacêuticas, advogadas, professoras, jornalistas, escritoras, artistas, muitas também domésticas. Havia entre as feministas quem se batesse pelo reconhecimento dos direitos dos animais (opondo-se à realização de touradas), quem promovesse o estudo e divulgação do espiritismo, quem publicitasse a aprendizagem do esperanto. Apesar de o conselho se definir sem filiação religiosa ou política, muitas eram republicanas e maçónicas.

Inspirada na lógica de trabalho em rede do Conselho Internacional das Mulheres, a organização feminista dirigida pela médica Adelaide Cabete constitui-se uma federação de associações portuguesas, com missões de beneficência e filantropia, recreio e defesa dos direitos profissionais.

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A direção do CNMP no 2º Congresso Feminista e de Educação (Lisboa, 1928). Da esquerda para a direita, no 1.º plano: Maria Leonarda Costa; Isaura Seixas; Tetralda de Lemos; Maria do Céu Branquinho; Sara Beirão; Rosa Pereira. No 2.º plano: Maria O’Neill; Angélica Porto; Beatriz Magalhães; Adelaide Cabete. No 3.º plano: Fábia Ochoa; Maria da Luz Santos; Zoé Pereira; Mariana Silva; Elina Guimarães; Maria Luísa Amaro; Deolinda Lopes Viera; Cipriana Nogueira; Fernanda Pimentel Arquivo de História Social do ICS-ULisboa

Ao longo de três décadas, 24 associações filiadas no CNMP atuaram em áreas muito diversas: apoio à maternidade, assistência ao parto, criação de cantinas escolares, organização de colónias balneares, treino profissional para raparigas de contextos desfavorecidos (bordados ou estenografia, por exemplo), empréstimo de livros a estudantes pobres, atribuição de bolsas, fornecimento de vestuário e calçado, defesa dos direitos da docência, incentivo à participação dos pais na vida escolar, luta contra o alcoolismo ou a prostituição regulamentada, entre muitas outras intervenções.

Em 1924, em Lisboa, o conselho realiza o primeiro de dois Congressos Feministas e de Educação. O encontro não passa despercebido da imprensa: “Nem todas as mulheres portuguesas aceitam resignadas [...] o espírito medievo, reaccionário, anti-científico [sic] e anti-natural [sic] que predomina na legislação e nos costumes deste país. […] Algumas, poucas, mas não das menos cultas, vêm dizer que se revoltam contra a [sua] condição de animais domésticos, de máquinas reprodutoras da espécie, de escravas naquela acepção integral que a escravidão tinha.” O artigo é do suplemento semanal ilustrado d'A Batalha. Outros jornais reportam positivamente o encontro, que conta com a presença do Presidente da República Manuel Teixeira Gomes. Segundo a Alma Feminina, o chefe de Estado mostrou-se um verdadeiro feminista, admirando-se como em Portugal as mulheres não gozavam ainda do direito de voto.

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Órgão de propaganda do CNMP. Inicialmente intitulado Boletim Oficial (1914-1916), em seguida Alma Feminina (1917-1946) e por último A Mulher (1946-1947) Arquivo de História Social do ICS-ULisboa

A década de 1920 é um momento importante na longa “marcha” do CNMP, termo recorrentemente usado pelas feministas em artigos que avaliam a evolução da sua persistente luta contra as desigualdades dos direitos entre homens e mulheres. Resistindo a muitas dificuldades, o conselho atravessa a I República, o sidonismo, a ditadura militar e parte do Estado Novo, batendo-se pelo sufrágio universal, pelos direitos civis das mulheres no casamento, por direitos laborais (salários iguais entre homens e mulheres ou condições especiais para trabalhadoras grávidas ou que amamentam, por exemplo), pela alfabetização e formação profissional das raparigas, e por direitos sexuais (o Estado aceitava o registo na prostituição de jovens com apenas 16 anos, mas o conselho esforça-se para que a idade mínima fosse alterada para 21).

Em 1947, o conselho é extinto pelo Estado Novo, desconfiado de uma orientação politizada que então se tinha afirmado com a chegada de Maria Lamas (1893-1983) à sua presidência. O feminismo está nos antípodas da ideologia do Estado Novo em relação às mulheres que continuam a associar-se em lutas pela democracia. 

Lutas pela democracia e igualdade

Vários grupos de mulheres foram criados nos movimentos unitários de oposição ao regime autoritário do Estado Novo e no seio das campanhas de candidaturas oposicionistas a eleições. Estes coletivos estiveram vinculados aos movimentos de oposição, associados pela proposta comum de derrubar o regime e instituir a democracia parlamentar. Tal confere-lhes uma dimensão organizacional e identitária singular. A abarcar mais de 20 anos de ativismo feminino, referimos a Comissão Feminina do Movimento de Unidade Democrática (MUD) (1945); a Comissão Feminina Eleitoral da Candidatura de Norton de Matos (1948-1949); o Movimento Nacional Democrático Feminino do Movimento Nacional Democrático (1949-1957); a Comissão Feminina Eleitoral da Candidatura de Arlindo Vicente (1958); a Comissão Feminina Eleitoral da Candidatura de Humberto Delgado (1958); o Núcleo Feminino da Comissão Democrática Eleitoral-CDE (1969), e o Núcleo Feminino da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática-CEUD (1969).

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Panfletos Eleições Presidenciais de 1949 – Candidatura de Norton de Matos – Comissões Femininas de Apoio EPHEMERA – Biblioteca e Arquivo de José Pacheco Pereira

Sendo difícil precisar as circunstâncias exatas da sua génese, quer tenham decorrido de proposta das mulheres ou sido fruto de propostas das comissões centrais dos movimentos, tais grupos responderam a uma estratégia de “especialização” da atividade política. Muitas mulheres pertenceram a vários grupos em simultâneo ou transitaram de uns que se diluíam para outros que iam sendo criados — grande parte delas pertenceu ao CNMP e à Associação Feminina Portuguesa para a Paz.

Estas comissões constituíram também espaços alargados de reivindicações particulares. As mulheres exprimiram-se e atuaram enquanto mulheres, emolduradas em contextos em que as distinções e as desigualdades entre os géneros impunham uma situação discriminatória, bem como obstáculos aos seus quotidianos. As comissões foram plataformas fulcrais de contestação dos modelos femininos do regime salazarista e de denúncia das dificuldades de vida das mulheres, na esfera privada e familiar, e no âmbito público (trabalho, assistência social e participação política). Isso está patente, por exemplo, nos objetivos do Movimento Nacional Democrático Feminino na sua primeira circular (em 1949) para a composição da comissão central: “Prosseguir o movimento reivindicativo iniciado em 1945 para a conquista das liberdades fundamentais; Ampliar esse movimento dedicando particular atenção aos aspectos económicos, social e moral da vida da mulher, tendo em vista a resolução dos seus problemas, para os quais mais do que ninguém, elas têm o dever de dar a sua colaboração; Fomentar e auxiliar todas as iniciativas de carácter progressivo levadas a cabo por mulheres quaisquer que sejam os seus credos políticos ou religiosos, quaisquer que sejam as suas condições sociais.”

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Helena Neves a discursar na campanha eleitoral do MDP/CDE, na Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1973. A partir da esquerda: Luísa Amorim (atrás), na mesa Lindley Cintra, Helena Neves, Caiano Pereira e José Tengarrinha Arquivo pessoal de Vanda Gorjão

Existiram mulheres nas comissões centrais em dois desses movimentos — Maria Isabel Aboim Inglez, no Movimento de Unidade Democrática em 1945, e Maria Lamas e Virgínia Moura, no Movimento Nacional Democrático em 1949. No entanto, a ação das mulheres concentrou-se nas comissões específicas, como “representantes” do sexo feminino, o que espelha, no limite, uma circunstância em que assumiram menores responsabilidades políticas do que os homens e foram investidas de menor poder também no seio da oposição.

Apesar da persistência das desigualdades e discriminações, a sua ação permitiu-lhes, ainda assim, aceder a novas experiências no espaço público que anteciparam e ajudaram a consolidar aspirações e expectativas mais igualitárias, e deram expressão a novas representações das mulheres enquanto atores políticos. Vemo-lo nas dinâmicas de participação das comissões eleitorais femininas nas listas oposicionistas da CDE (1969) e da CEUD (1969). Um momento de antecâmara daquilo que após o 25 de Abril seria, nomeadamente, a forte presença das mulheres na Assembleia Constituinte (1975).


Projeto de investigação desenvolvido no ICS-ULisboa e financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT – PTDC/HAR-HIS/29376/2017) 


Historiadora; socióloga; socióloga/ICS-ULisboa

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