O Estado não é pessoa de bem

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Uma nação que procura recuperar e construir a sua identidade democrática não pode situar a cidadania que protesta legitimamente na dialéctica amigo-inimigo; esquerda e direita, bons e maus, amigos da paz e inimigos da paz.” Decisão do Supremo Tribunal de Justiça da Colômbia

A defesa dos cobardes

O Governo da Colômbia resolveu adoptar a defesa dos cobardes e individualizar uma acusação que deveria ter assumido no seu todo. Condenado pelo Supremo Tribunal a pedir desculpas à população pelos excessos no controlo das manifestações de Novembro do ano passado, numa altura em que só este mês a polícia já matou 13 pessoas que se manifestavam em Bogotá e Soacha, o executivo de Iván Duque (mais um representante da direita mais à direita que chegou ao poder na América Latina), através do seu ministro da Defesa, Carlos Holmes Trujillo disse que a polícia anti-distúrbios (o denominado ESMAD que o tribunal condenou por reprimir de forma “sistemática, violenta, arbitrária e desproporcional” os protestos) “não incorre institucionalmente em excessos” e que as acções violentas mais extremas “corresponderiam a actuações individuais de alguns dos seus integrantes”. Imaginando que o ESMAD é uma força de elite, bem treinada e capaz de lidar com situações de stress, como se explica que alguns dos seus elementos ajam para lá das ordens que foram dadas? Ou a ESMAD é violenta no seu todo ou é incompetente porque permite, sem punir, que os indivíduos que a formam actuem como lhes dá na real gana. Seja qual for a resposta, é triste ver um Governo matar quem exerce um direito legítimo.

Licença para matar

São muito poucos os polícias que matam e são punidos nos Estados Unidos. Menos ainda aqueles que matam afro-americanos. Viu-se esta semana com a decisão do tribunal de não acusar os polícias que mataram uma mulher negra que estava em casa a dormir. Um chefe da polícia e um agente presente na cena do crime foram despedidos, mas os dois homens que entraram numa casa a meio da noite para uma rusga e acabaram por matar a tiro Breonna Taylor não vão sofrer consequências. Como escreve Shaila Dewan no New York Times, “a falta de uma acusação de homicídio ou de homicídio por negligência é uma afronta – mas não é uma surpresa”. Nos EUA, são poucos os polícias em serviço que matam e são acusados e, desses, somente um terço é condenado. Os inúmeros protestos que vemos nas ruas desde a morte de George Floyd, asfixiado pelo joelho de um polícia, a 25 de Maio, todo o movimento Black Lives Matter e as marchas pela dignidade da vida humana parecem fazer pouca mossa nos tribunais norte-americanos, onde os juízes estão sempre mais propensos a não indiciar ou condenar polícias. Mesmo em relação a Floyd, cuja morte está bem documentada, o procurador-geral Keith Ellison avisa que “julgar este caso não será fácil” e “conseguir uma condenação será difícil”.

Espiar um submarino

O ARA San Juán era um submarino da marinha argentina que desapareceu em Novembro de 2017 durante um exercício. Só quase um ano depois os seus restos foram descobertos no fundo do Atlântico Sul, onde se afundou junto com os seus 44 tripulantes. Em 2018, os familiares das vítimas denunciaram o então Governo do Presidente Mauricio Macri de os espiar, com escutas ilegais dos seus telefones. Nessa altura, as acusações foram ridicularizadas pelo poder: “Muitos pensavam: ‘A quem é que lhe passa pela cabeça que andam a perseguir pessoas que perderam um familiar em plena democracia’”. Hoje existem documentos dos serviços secretos que comprovam essas mesmas escutas ilegais que permitiam ao então chefe de Estado e de Governo antecipar todos os pedidos dos familiares. Por isso, estes querem ver o caso investigado e “é preciso começar pelo ex-Presidente Macri e pelo ex-ministro [Oscar] Aguad”, afirmou ao Página/12 Luis Tagliapietra, pai de Alejandro, um dos tripulantes do ARA San Juán. “Mas que merda podiam descobrir se apenas pedimos justiça para os nossos familiares?”, perguntava-se Claudio Rodríguez, irmão de Hernán, outro dos mortos do submarino, citado pelo mesmo diário argentino.

O último que feche a porta à liberdade

A imprensa australiana deixou de ter jornalistas acreditados na China. Os últimos dois, Michael Smith, correspondente do Australian Financial Review, e Bill Birtles, que da Australian Broadcasting Corporation, deixaram o país esta semana, marcando com o isso o fim de meio século de presença permanente de jornalistas australianos na China. “Acredito estarmos no período ideologicamente mais extremo de que já vimos na China desde o fim da Revolução Cultural”, disse Britles, citado pelo South China Morning Post. “De repente, já ninguém critica a direcção económica da China”, explicou Smith, falando da dificuldade que era encontrar pessoas para falar. “Era muito, muito difícil encontrar vozes independentes dentro da China”, acrescentou. Com Xi Jinping no poder, a cena acentuou a prevalência do Partido Comunista nos destinos da China e a acentuação de que nada pode ser feito ou dito contrariamente à linha do partido. Quase todos aqueles a quem se permitia uma dose de dissidência estão a sofrer as consequências agora da sua dissidência. Se em algum momento se pensou que a abertura económica da China e a sua transformação social acabaria por resultar numa inevitável abertura do regime, a chegada de Xi ao poder demonstrou que era uma teoria sem fundamento.

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