Como se pensa e escreve sobre comida? Ricardo Dias Felner, O Homem Que Comia Tudo, explica
Curso de Escrita e Cultura Gastronómica, pelo jornalista e blogger, começa esta semana no Manna Porto. “Os bons escritores, gastronómicos ou não, são essas pessoas que conseguem pôr por palavras sensações e ideias que julgávamos indizíveis”.
Anuncia-se como um curso “para todos os que gostam de comida, que fazem dela a sua profissão ou que gostariam de a fazer”. Ricardo Dias Felner, autor do livro e do blogue O Homem que Comia Tudo, leva até ao Porto o seu Curso de Escrita e Cultura Gastronómica, que arranca no dia 24 e se prolonga até 10 de Outubro, no espaço do Manna Porto.
A promessa é que, durante três semanas, o Manna se transformará “numa redacção com aromas a pão artesanal e a café de especialidade”. Os participantes irão aprender a pensar e a escrever sobre comida, e, entre outras coisas, a perceber “onde escrever e como ser publicado”.
Terão ainda a oportunidade de “andar a saltar de templo gastronómico em templo gastronómico, na cidade do Porto” – das tascas aos cocktails, dos vinhos naturais e petiscos (com Tiago Feio, do novo bar de vinhos Tia Tia) ao azeite (no Esporão), do mercado (com Pedro Limão) a um piquenique (com Aurora Goy, do Apego), passando por um jantar com menu exclusivo (com Vasco Coelho Santos, do Euskalduna) e uma entrevista com Rui Paula da Casa de Chá da Boa Nova.
Antes do arranque do curso, conversámos com Ricardo Dias Felner, que também publica alguns dos seus trabalhos no PÚBLICO, para perceber melhor o que é isso de escrever sobre comida.
No curso há um módulo intitulado “Aprender com os melhores”. O que é que o faz parar e ler um texto, ou ver um programa de televisão, sobre comida?
Depende do dia. Ontem, por exemplo, adormeci a ler um livro maravilhoso sobre a história dos talheres e do fogo, Consider the Fork, de Ben Wilson. Depois, tive uma insónia, e às quatro da manhã apeteceu-me uma coisa menos densa, um livro bonito, com imagens bonitas: agarrei no The Whole Fish, de Josh Niland, um jovem australiano que está a mudar a forma como muita gente trata o peixe (entre outras coisas, aprendi que não devemos deixar os peixeiros lavarem-nos o peixe, no mercado).
Mas sou um tipo obsessivo e por isso consumo também muita coisa monotemática e absurda. Tenho um livro que se chama A Alface. Outro que é só sobre laranjas, o Oranges, do John Mcphee, um clássico intemporal da escrita gastronómica (este é mesmo bom).
Quanto aos programas de televisão sobre comida, sou um consumidor irregular. Adorava os programas antigos da BBC, com apresentadores carismáticos, como eram o Keith Floyd e as Two Fat Ladies. Dos actuais, gosto do No Reservations, a primeira série do Anthony Bourdain. E depois há uma coisa extravagante, na Netflix, que adoro, o Flavorful Origins (A Origem dos Sabores), food porn sobre os maiores tesouros da culinária chinesa. Completamente diferente, mas também chinês e muito bom, é o canal da Liziqi no Youtube, uma rapariga que vive com a avó no campo, produz os seus alimentos numa horta de sonho e cozinha com a delicadeza de uma bailarina.
Aprender a fazer pão, como aconteceu consigo, ou queijo, ou vinho, ou, simplesmente, a cozinhar bem, é essencial para se poder escrever sobre comida?
A razão principal porque fiz cursos de cozinha acho que foi, em primeiro lugar, porque queria comer isso tudo em casa, bem feito. Acho que não é essencial cozinhar-se bem para escrever sobre comida. Ajuda, mas não é essencial. Um dos jornalistas e críticos de que mais gosto, o Pete Wells, do The New York Times, durante o confinamento decidiu começar a publicar no Instagram fotos das suas criações culinárias. E aquilo tinha tudo um ar meio miserável.
Para se escrever sobre comida é essencial ter curiosidade, muito apetite e uma atitude séria e rigorosa. Se estivermos a falar de um crítico de restaurantes, claro que ajuda ter comido em muitos sítios e ser-se culto. Dentro do ser-se culto, saber cozinhar é uma valência, sem dúvida, como o é ser-se viajado. Mas, há quem seja forte numas coisas, menos forte noutras.
Jonathan Gold, outro dos mais prestigiados críticos norte-americanos, já falecido, tornou-se célebre por dar a conhecer a street food de Los Angeles, quase sempre de culinárias longínquas, das Filipinas à Etiópia. Ora, ele nunca saía dos EUA, não provava a comida sobre a qual escrevia fora dos EUA. O seu sucesso — muito merecido, diga-se — vinha do estudo, das provas e do talento.
Se detestarmos uma refeição ou o trabalho de um chef, é legítimo escrever um texto a arrasar ou é preferível ignorar?
Legítimo, é. Agora, se a comida for má, mas nem o sítio nem o chef forem relevantes, não faz sentido falar no assunto. A crítica seria só mais um prego no caixão.
Mas se a abertura de um restaurante gerou grande expectativa, se o restaurante foi vendido nas redes sociais e na imprensa como algo incrível, se à frente está um chef xpto — aí tenho de escrever, mesmo que o restaurante se venha a revelar mau. E posso ser duro, sim.
O José Quitério, numa das raras entrevistas que deu —precisamente, neste jornal —, em 2015, já quando se estava a reformar, disse isto: “Escrevemos sempre em nome do leitor e do que o restaurante deve ao cliente em troca do dinheiro que este paga.” Acho que faz sentido ter isto bem presente. Cada vez mais, escreve-se a pensar no que o chef e a agência de comunicação que trabalha para o restaurante vão achar do texto. Esta pressão é muito evidente, tanto mais que o meio é pequeno e todos se conhecem. Teme-se que os convites e os almoços grátis acabem ou, simplesmente, que se perca uma fonte de informação. Acontece o mesmo noutras áreas do jornalismo, do cultural ao económico, são efeitos do próprio enfraquecimento da profissão e do seu empobrecimento. Mas no chamado jornalismo de lifestyle esta dependência está particularmente generalizada e as fronteiras são ainda mais difíceis de gerir.
Faltam-lhe alguma vez as palavras certas para descrever um prato ou uma refeição, aquelas que traduzem exactamente uma sensação ou uma ideia?
Muitas vezes. E a falha é minha. Essas palavras existem, eu é que estou a ser incompetente ou preguiçoso. Os cursos de escrita e cultura gastronómica que tenho dado procuram dar ferramentas para desbloquear esse problema. Mas depois é preciso praticar, ler muito. Os bons escritores, gastronómicos ou não, são essas pessoas que conseguem pôr por palavras sensações e ideias que julgávamos indizíveis.
As fotos substituem, complementam, ou diminuem a força de um texto?
O ideal é que complementem, que foto e texto não sejam redundantes. Para um jornalista e crítico gastronómico, as fotos de comida têm ainda a função de funcionar como um bloco de notas: tiro uma foto com o telemóvel a uma travessa de cozido e já não preciso de estar ali a apontar todos os ingredientes do prato.
Até que ponto questões que vão para além do prazer, como a saúde ou a sustentabilidade, devem ser preocupações centrais de quem escreve sobre comida?
Não diria que devem ser centrais, mas são importantes. O primeiro escritor gastronómico conhecido terá sido Apício, um gourmet célebre que viveu entre o século III e IV. d.C., e é extraordinário como o livro que faz a compilação dos seus escritos diz tanto sobre os efeitos para a saúde da comida.
Essa preocupação em aliar sempre comida e saúde foi renovada durante a Renascença e só terá passado para segundo plano quando a cozinha se tornou numa arte e num prazer. Os franceses foram os grandes responsáveis por isso, a partir do século XVII. Focaram-se no sabor, na estética, inventaram molhos maravilhosos cheios de coisas nefastas, e só então culinária e nutrição passaram a ser áreas distintas.
Eu acredito, como dizia Brillat-Savarin, o gastrónomo francês, que somos o que comemos. Interessa-me o que a comida faz ao nosso corpo e interessa-me que as pessoas tomem opções conscientes. Se a opção for pelo prazer em detrimento da saúde, muito bem, cada um é livre de escolher o que quer. Na verdade, eu próprio escolho muitas vezes o prazer.
A sustentabilidade também me interessa, até porque me parece que a maior parte da comida produzida de forma sustentável é mais saborosa. Mas uma coisa são as minhas causas e opiniões, outra coisa é fazer jornalismo, dar informação para que sejam as pessoas a tomar as decisões. E eu vou mais por esta via.