No novo bar de Lisboa os discos de vinil são o prato do dia
Vira o disco e toca o meu: o novo bar do hotel Esqina, na Baixa, chama-se Static e junta comida, cocktails e uma grande colecção de discos de vinil. Um poiso onde a música, mais do que mero pano de fundo, é elemento de aproximação social.
O par de gira-discos e os caixotes de discos de vinil sobre o balcão à entrada mostram, mesmo aos mais distraídos, ao que vão. A este bar vai-se para escutar música – a nossa e a dos outros. Uma outra forma de “aproximação social”, sem furar as regras do distanciamento. A comida, os cocktails e as artes fazem o resto.
Bem vistas as coisas, no Static não há propriamente nada de novo. E isso está longe de ser defeito. Por vezes, a arte está na combinação daquilo que já existe, como peças de um puzzle que estava só por montar. O bar já existia, a colecção de vinis também, tal como o gosto pelas artes, o espírito de comunidade e a vontade de fazer coisas pelo público local. Por vezes, o empurrão é tudo o que falta.
Teresa Barros, CEO da agência de comunicação Xpose, chama a si alguma da responsabilidade de fazer nascer o Static, juntando dois clientes seus que precisavam de solução para um problema em comum: o que fazer para contrariar a maré negra que a pandemia levantou sobre o sector do turismo.
De um lado, Shay Ola, o britânico com constituição de boxeur que chegou a Lisboa como turista e por cá ficou, sob o lema “make Bairro Alto great again”. Ali, em sociedade com Hannah Reusser, criou o restaurante/bar Queimado, idealizado desde o primeiro risco para servir de poiso ao público local. O estado de emergência forçou-o a encerrar portas, tal como forçou Pedro Borges a fechar o Esqina Cosmopolitan Lodge, hotel de quatro estrelas de espírito independente situado na Rua da Madalena.
O bar, portanto, já ali estava, no piso térreo do Esqina, a fazer as funções de bar de hotel. Aliás, mais do que apenas isso: por ali já passava a comunidade artística, nomeadamente músicos que ali faziam listening parties a propósito do lançamento dos seus álbuns. Isso e a própria identidade do hotel agradaram a Shay, um cozinheiro pouco convencional, auto-didacta, habituado a navegar marés adversas. Em 2007, era designer de interiores em Londres e viu a crise do subprime fechar-lhe o negócio. Em jeito de reacção, virou a agulha para a cozinha, com o lançamento uma empresa eventos criativos em torno da comida, a que chamou The Rebel Dining Society. “Se sobrevivemos nessa altura, foi pela partilha de ideias e de recursos”, conta, em jeito de introdução à parceria que ele e Hannah inauguraram com o Esqina de Pedro Borges, no dia 17 de Setembro. “Isto é uma jogada defensiva. Se não conseguimos arranjar uma maneira de ser optimistas, então qual é o propósito?”
O Static tem inspiração assumida nos bares audiófilos do Japão, ainda que numa interpretação mais descontraída, menos focada na perfeição sonora e mais na música como elemento de convívio. “A descoberta musical faz parte de uma partilha social à distância”, acredita Shay, que vê na cumplicidade da coincidência de gostos musicais um óptimo factor de identificação entre estranhos mascarados.
E que música?, pergunta o leitor, desconfiado, imaginando já um deprimente desfile de refugos. Pois bem, exactamente o oposto disso. Nos caixotes – os que ocupam o balcão e outros, colocados sobre uma mesa, ao fundo da sala – não faltam discos que apetece pedir para ouvir, uns atrás dos outros, sobretudo clássicos. Working Together de Ike & Tina, um tesouro dos Beatles chamado Abbey Road, Horses de Patti Smith e Nasty Gal, da diva com voz de bagaço Betty Davis, servem o propósito ilustrativo.
Mas há também uma salutar colecção de guilty pleasures, onde brilham Vanilla Ice, Europe, New Kids On The Block, Mel & Kim e muitos outros, em formato 45 rpm. A colecção pessoal de Shay, posta ao serviço (e à confiança) do cliente, que escolhe e entrega o disco ao DJ de serviço, e este tratará de dar rotação a todos os pedidos. Democrático, acima de tudo.
A música preenche tanto a sala do bar, como o pátio-esplanada e o terraço com vista para o quadro cubista de telhados e casario da colina das Chagas (ou Carmo, para os não-iniciados na olissipografia). E chega também à cave, que serve como espaço expositivo para as artes e apresenta, actualmente, uma exposição de capas de discos reinventadas por artistas baseados em Lisboa – cuja receita de vendas será doada ao Fundo de Solidariedade com a Cultura.
Dos cocktails à comida com inspiração asiática
Resta falar do serviço de bar propriamente dito, onde além de vinhos nacionais, cervejas artesanais locais e cocktails habituais há também uma lista concisa de criações próprias, algumas com trocadilho musical no nome, como Pink A Butterfly (brincadeira com o título do disco de Kendrick Lamar To Pimp A Butterfly), um aveludado de toque picante com gin, chá de ervilha-borboleta, clara de ovo e pimenta-rosa.
A fazer-lhes companhia – e também como forma de acomodar a proibição de venda de álcool após as 20h00 sem acompanhamento sólido – está uma igualmente curta lista de comidas, onde Shay Ola reconhece também alguma inspiração asiática: pimentos de Padrón com um toque extra de picante por cima, frango frito com crème-fraîche, ovas e alga nori, entrecosto glaceado com molho de soja, beringela grelhada com miso e alho frito. Tudo a preços razoáveis, para não espantar o público local, elemento de suma importância no grande plano daquilo que o Static se propõe ser. A peça final do puzzle, por assim dizer.
Artigo alterado às 14h53 de 23 de Setembro de 2020, para inclusão de Hannah Reusser como sócia de Shay Ola no Queimado e no Static.