O que sabe sobre a StayAway?
A disponibilização da nova app é uma excelente ocasião para promover a formação de conhecimentos e a discussão de ideias, que está a ser desperdiçada em propaganda e marketing. Não será demais lembrar que a única decisão cidadã consciente, livre e responsável é a informada.
A aplicação móvel StayAway Covid-19 foi na última semana oficialmente apresentada em Portugal. O evento mereceu grande destaque do Governo e vinha já sendo antecedido por exortações de celeridade de muitos comentadores televisivos. O aplauso foi, pois, unânime. Da minha parte, porém, reconheço uma certa frustração, preferindo que este momento tivesse sido acompanhado pela divulgação de alguns dados objectivos pertinentes acerca das corona-apps. A informação disponibilizada limitou-se ao modo de funcionamento da aplicação, sem ter contribuído para uma opção esclarecida e responsável acerca do seu uso. Foi assim uma oportunidade perdida de formação cívica e também uma menorização do cidadão ao se ter trocado a devida informação por excessiva publicidade.
Aliás, esta não é uma realidade de hoje. Desde que, em Abril, a Comissão Europeia solicitou aos Estados-membros que produzissem uma aplicação móvel de rastreio da covid-19, recomendando também um amplo debate público sobre a mesma, assistimos entre nós apenas a um reiterado anúncio da disponibilização próxima deste recurso digital como instrumento essencial para permitir o regresso ao anterior quotidiano, graças à sua capacidade de identificação de risco de contágio e quebra das redes de infecção. Na ausência de discussão pública sobre as corona-apps, a perspectiva dominante tem sido de confiante aceitação. Esta ausência de informação cabal e objectiva incomoda-me e a ausência de sentido crítico na comunicação profissional inquieta-me. Afinal, sabemos bem que a informação acrítica se converte em propaganda, e esta é sempre manipuladora de ideias e de vontades, servindo interesses outros que não os do próprio.
Não tenho dúvidas que o rastreio digital se venha a tornar no futuro um instrumento relevante de saúde pública. Entretanto, a utilidade da StayAway para esta pandemia será, no mínimo, duvidosa.
Detenhamo-nos muito brevemente sobre a StayAway. Pensada desde Abril, o seu processo de produção permitiu diluir dois riscos de invasão de privacidade dos cidadãos associados aos sistemas de rastreio digital: um primeiro relativo à possibilidade de geolocalização dos utilizadores da app, o qual foi eliminado pela opção de interacção através do recurso ao Bluetooth; um segundo relativo à centralização dos dados pessoais recolhidos, também eliminado pela opção de um modelo descentralizado, isto é, sem armazenamento de dados. Diluiu-se também um terceiro risco associado às apps de rastreio à covid-19 relativo à sua fiabilidade, dado o significativo registo de falsos positivos: contactos de proximidade muito breves, e por vezes mesmo interpostos por barreiras físicas como paredes, e, por isso, sem possibilidade de contágio, acusavam, não obstante, o contacto.
Estas significativas melhorias do modelo disponível em relação aos perspectivados inicialmente no contexto europeu e mesmo mundial não garantem, todavia, a inocuidade do rastreio digital e menos ainda a sua eficácia. Importa esclarecer que há algumas condições incontornáveis associadas ao uso da app que precisam de ser asseguradas cumulativamente para que esta efectivamente funcione. A primeira é a de que a maioria da população descarregue a aplicação, sendo que quantas mais pessoas a possuírem activa maior será a sua eficácia. Ora, à excepção dos países em que a aplicação de rastreio à covid é obrigatória, nenhum outro ainda alcançou os níveis mínimos para garantir a sua eficácia. Não creio que em Portugal venha a ser diferente.
A segunda exigência é a de testes massivos à população. Afinal, se os assintomáticos continuarem sem ser testados continuarão também a circular e a infectar os seus contactos de proximidade, com ou sem StayAway. Depois, será ainda necessário que a pessoa testada positiva para a covid aceda a divulgar a informação acerca da sua situação clínica – condição que me parece ser a mais provável de acontecer: quem descarregou a app, em princípio, predispõe-se a partilhar a sua eventual infecção, uma vez garantida a confidencialidade desta informação. Por fim, entre os aspectos mais relevantes para a eficácia da app no contexto da saúde pública importa que os receptores de um contacto de risco se disponibilizem a ficar em quarentena (e quem pagará os custos da inactividade?), devendo também ser testados (gratuitamente – supõe-se!). Sem querer ser exaustiva na enumeração das condições mínimas de eficácia das apps de rastreio para a covid-19, convém acrescentar que o seu deficiente funcionamento, por diferentes razões, tem sido registado em todos os países, e também já em Portugal na sua primeira semana de acesso.
Podíamos acrescentar que o rastreio digital introduz novas modalidades de injustiça social, excluindo quem poderá não lhe ter acesso como sejam idosos, sem-abrigo, trabalhadores sazonais imigrados, refugiados, etc. No entanto, não pretendo enveredar pelo tema da discriminação digital. Centro-me preferencialmente no da eficácia das apps de rastreio para a covid-19, que publicamente se apresenta como indubitável e que, afinal, não está sequer avaliada. Pelo contrário, existe um amplo consenso entre os cientistas na afirmação de que as corona-apps começaram a ser usadas sem qualquer estudo prévio que assegurasse a sua eficácia, ou tão pouco o respeito pelo princípio da proporcionalidade entre os riscos de violação da privacidade e os ganhos para a saúde, e que hoje continua a não ser possível estabelecer o papel real que possam ter no controle da infecção. Convirá aqui lembrar a reiterada invocação, nos últimos meses, da Coreia do Sul e até da Alemanha como exemplos de contenção do contágio graças à utilização precoce da app e verificar como os números de contágios que actualmente acusam não lhes conferem qualquer pódio.
É verdade que temos um estudo da última semana, realizado por investigadores da Google e da Universidade de Oxford, afirmando que as corona-apps poderão ser eficazes com apenas 15% de subscritores – em Abril, a Universidade de Oxford referia-se a um valor mínimo de 60%. Porém, os próprios reconhecem tratar-se de uma simplificação do mundo real e o estudo ainda não foi validado. Aliás, o envolvimento da Apple e da Google nas corona-apps, ditado pela mais alargada acessibilidade dos dispositivos móveis às apps, o que também se verifica com a StayAway, não está à margem de interesses económico-financeiros. Afinal, o bem mais precioso no mundo de hoje não é o ouro, mas os dados pessoais e em relação ao tratamento destes o historial destas gigantes tecnológicas só conduz à suspeita (apoiada por casos como o da Cambridge Analytica e que as sucessivas multas da Comissão Europeia à Google acentuam). Recordemos ainda que a Recomendação da Comissão Europeia de Abril admitia ocasionais e não deliberadas recolhas abusivas de dados pessoais e eventuais prejuízos ao nível dos direitos fundamentais, e sublinhemos que mesmo dados digitais anonimizados podem ainda ser rastreáveis.
Em democracia não há razões válidas para ignorar informação pertinente, temer o diálogo plural e furtar-se ao debate contraditório. A disponibilização da StayAway é uma excelente ocasião para promover a formação de conhecimentos e a discussão de ideias, contribuindo para uma cidadania esclarecida e empenhada, que está a ser desperdiçada em propaganda e marketing. Não será demais lembrar que a única decisão cidadã consciente, livre e responsável é a informada.