Ainda hoje e creio que para sempre
O PÚBLICO foi a nossa grande aventura. Só ele teria a ousadia, a ambição e a visão de construir neste país um jornal como os grandes jornais europeus. Estávamos em 1989. O ano em que tudo era possível.
Há pessoas que fazem parte da nossa vida. À distância ou ao nosso lado, estão lá. Quase sempre. Fazem parte do que somos. Quando partem, levam com elas uma parte de nós. Pequena, grande? Pouco importa. É sempre uma dor. Uma perda. Uma saudade. Um vazio. O Vicente foi importante na minha vida, por isso levou um pedaço com ele. Esta é a parte da perda. Vem a seguir a parte da memória.
Era um ser insubmisso e livre. Conheci muito pouca gente tão insubmissa e tão livre. Foi a primeira lição de tudo o que aprendi com ele. Foi o jornalista com quem mais aprendi a ser jornalista. Tinha imensos defeitos e enormes qualidades. Era temperamental e frio, ao mesmo tempo. Exagerado e simples. Intuitivo e racional. Polémico e excessivo. Trabalhava com paixão, mas nunca se desviava do rigor e da verdade ou daquilo que mais se aproximava da verdade. Da independência possível. Nisso, era absolutamente intransigente. E tremendamente exigente. Tivemos discussões monumentais nas turbulentas madrugadas do fecho da revista. Ainda no Expresso. A Revista do Expresso. Mas, no fundo, aquilo a que eu mais aspirava era ouvi-lo dizer: “Bom texto, Sousinha”. Quando me perguntou se queria ir com ele para fundar o PÚBLICO, não o deixei acabar a frase.
O PÚBLICO foi a nossa grande aventura. Só ele teria a ousadia, a ambição e a visão de construir neste país um jornal como os grandes jornais europeus. Estávamos em 1989. O ano em que tudo era possível. Caía o Muro. Gorbatchov descongelava o mundo. “O homem que descongelou o mundo”. O título genial de uma das grandes capas que marcaram a história do jornal. A síntese perfeita desse tempo. Dele. Nos momentos em que se aproximava da genialidade. Escancarou as portas e as janelas da imprensa portuguesa ao mundo e o mundo passou a fazer parte integrante do jornalismo português. Foi, talvez, a sua maior contribuição – a sua imensa contribuição – para a história da nossa democracia. Não suportava a ideia de que o noticiário internacional fosse uma simples nota de pé página. O PÚBLICO também nasceu desta irritação.
Tinha a paixão pela política no sentido mais lato e mais nobre da palavra. Era isso também que eu partilhava com ele. Um dia, discutimos um partido que fosse ao mesmo tempo moderado e radical. Era um individualista no melhor sentido da palavra. Um espírito radicalmente livre. Não se daria nunca bem com as regras de um partido político. Por isso, a sua experiência no PS foi tão curta. Descrevia-a como falava. Com gestos largos, exagerados, quase cómicos. Como descrevia a vida. Encontrávamo-nos às vezes no supermercado da nossa rua. Ficávamos a conversar em voz muito alta, com toda a gente a olhar para nós, porque o Vicente ouvia mal. Na última vez, já em plena pandemia, exagerámos no toque dos cotovelos, na mascarada das máscaras, no lado “demencial” – era uma palavra sua – da situação. Trocávamos mensagens sobre os nossos textos no PÚBLICO. Eu, como no primeiro dia da minha vida no Expresso – há tantos anos –, ainda ficava feliz com cada um dos seus elogios. O que posso dizer mais? Que eles são as condecorações que trago ao peito. Ainda hoje e creio que para sempre.