Balada do silêncio
Nesta sociedade de produção, o tempo para sequer parar e relectir é um luxo ao alcance de poucos privilegiados. A consciência social colectiva é até conceito esdrúxulo.
À distância de um telefonema, escuto a faca percorrendo o pescoço de quem luta para pagar as contas. No meio do caos hiperactivo, sobrealimentados pela exigência da superprodução, podemos esgrimir, no vazio, um suspiro ao sentir o alívio do som metálico da faca a abandonar a garganta do meu bom amigo.
“Sinto-me um escravo. Tenho o privilégio de trabalhar 12 horas. Preparo, filmo, arrumo tudo e levo os colegas a casa. Adormeço e não sei quando me voltam a chamar. Faço o que gosto, mas no final do dia passo uns recibos minguados. Podia fazer outra coisa, para a qual não estudei e ganhava mais, ou seja, o ordenado mínimo. Aqui na empresa estamos todos na mesma mas separados, cada um na sua ilha. Já não sei em quem posso confiar estas palavras e procurar uma solução que parece utópica: resolvermos isto juntos.” Bem-vindos ao admirável mundo (desregulado) do trabalho audiovisual. De vestido desumano na mão, este meio mascara o indivíduo, sem ordem, no papel do trabalhador precário, enquanto o Ministério da Cultura e sindicatos já nem servem de pronto-a-vestir.
Nesta sociedade de produção, o tempo para sequer parar e reflectir é um luxo ao alcance de poucos privilegiados. A consciência social colectiva é até conceito esdrúxulo. Envolvidos na ausência de laços e vínculos efectivos procura-se sobreviver. Maximizar a produtividade, sem entender muito bem o caminho, justificando uma violência que, não raras vezes, desemboca em depressão. Neste multitasking infinito aumenta-se a ansiedade através do excesso de estímulos prejudicando a nossa economia da atenção.
Como o filósofo germano-coreano Byung-Chul Han refere, “se o sono é o clímax da descontracção física, o tédio profundo é o ponto alto da descontracção espiritual”. O silêncio que preenche salas de jantar pode alimentar refeições incómodas. O silêncio que irrompe conversas cria até momentos delicados. Abracemos a utilidade destes silêncios para não sermos assaltados pela hiperactividade que desemboca na histeria do trabalho, acentuada pelo ritmo da vida activa. Não percamos a capacidade contemplativa. Nietzsche defendia que para obtermos “uma cultura distinta” necessitamos de nos educar para uma lenta e morosa visão apoiada numa atenção profunda.
Sabe-se que a concentração actual de um ser humano é inferior à de um peixe vermelho, cerca de oito segundos (mantém-se a pensar neste texto?), e isto resulta da incapacidade para resistirmos à mecânica actual tão pobre em interrupções. Temos medo do silêncio e, por isso, evitamos a pausa a qualquer custo. Encontramos, procuramos e induzimos estímulos ruidosos em toda a parte. Inspiramos o medo de dizer não. Expiramos uma contínua tensão. Não, porque quero abandonar o caos e ler. Não, porque quero abrandar enquanto os outros querem mais dinheiro, projectos e iniciativas. Afinal, não será uma necessidade humana encontrarmos paz numa actividade básica, simples e silenciosa? Como o processo lento e sustentável de folhear um caderno fazendo o carvão beijar a folha e aí tatuar os nossos pensamentos.
Até hoje mudei várias vezes de ideias, fruto das interrogações constantes. A semente que planta a pergunta germina por cima da arrogância da afirmação. Deleito-me com as perguntas que servem de trampolim para o vazio. O estímulo encontrado através da palavra é gratuito, basta estar atento à mente. O aborrecimento que muitos sentem quando se encontram sozinhos é a solitude que necessito para estar atento ao mundo e não ser interrompido. “O mundo desaparece quando nos lançamos nele”, dizia Heidegger e aí podemos experimentar a plenitude do tempo eternizado num momento.
Sermos senhores do nosso tempo significa rejeitarmos ser conduzidos pelas notificações digitais e todo o seu ciclo de dopamina, que a qualquer curva nos torna meros peões insatisfeitos. Lembremos as palavras de Séneca: “A vida é longa se a soubermos usar”. Procuremos então o luxo nesta era do ruído: a pausa do silêncio.