Os “acordos sobre sentença” no âmbito da Estratégia de Combate à Corrupção
Na sequência de uma prática jurisprudencial de décadas, que no nosso país teve como eco mais conhecido o “caso dos submarinos”, em que os tribunais germânicos, com rapidez, condenaram os agentes, trata-se de uma forma de justiça negociada ou consensualizada que não se pode confundir, porém, com o sistema anglo-americano do “plea bargaining”.
Foi aprovada em Conselho de Ministros e encontra-se em consulta pública a “Estratégia Nacional de Combate à Corrupção” (ENCC) 2020/24. Trata-se, para já, de um conjunto de orientações que, em muitos casos, terão de ser transformadas em propostas ou projectos de lei e que, no domínio penal, são da competência relativa da Assembleia da República.
Proponho-me ir analisando, em sucessivos artigos de opinião, as medidas atinentes à matéria criminal, tendo escolhido começar por um primeiro enquadramento sobre os ditos “acordos sobre sentença”, designação crismada por Figueiredo Dias e que corresponde a um instituto existente na Alemanha (“Absprachen”). Uma primeira nota (pp. 62-63) é a muito embrionária formulação apresentada. É certo que estamos em fase de recolha de contributos e que a Ministra da Justiça terá pretendido balizar o menos possível o debate, mas também é seguro que ainda teremos de aguardar pelos concretos articulados para nos pronunciarmos com maior exactidão.
Na sequência de uma prática jurisprudencial de décadas, que no nosso país teve como eco mais conhecido o “caso dos submarinos”, em que os tribunais germânicos, com rapidez, condenaram os agentes, trata-se de uma forma de justiça negociada ou consensualizada que não se pode confundir, porém, com o sistema anglo-americano do “plea bargaining”. Antes de mais, do que se trata é de, com base numa confissão integral e sem reservas do arguido, obtida antes da fase de julgamento, haver um acordo que estabeleça ou um mínimo e um máximo de pena a aplicar ao arguido, ou só um destes, ou até mesmo um “quantum” exacto de pena. Todas as modalidades são pensáveis e, para o efeito que aqui me anima, não releva analisar como as coisas sucedem exactamente na Alemanha ou em outros países que têm institutos próximos, como em Itália (“patteggiamento”) ou em Espanha.
Com base no art. 344.º do Código de Processo Penal (CPP), o decano dos catedráticos do Direito e Processo Criminais portugueses, Jorge de Figueiredo Dias, propôs, em conferências e depois em livro (2011), que mesmo sem qualquer alteração ao dito Código, se poderia chegar ao acordo. O que se ganharia? Celeridade e eficácia, porquanto não haveria produção de prova depois de em audiência de julgamento o arguido confessar e um incentivo para este que, deste modo, sabia com o que podia contar e, naturalmente, tendo confessado em fase anterior do processo, tal importaria um encurtamento do mesmo, com poupança de meios. A questão jurídica é ainda hoje muito controvertida e encontrou opositores e defensores. Apesar de a actual ministra – à época Procuradora-Geral Distrital de Lisboa (hoje diz-se Regional) – ter sido uma das grandes entusiastas, emitindo orientações aos magistrados do Ministério Público quanto a inúmeros aspectos práticos que a propósito se levantavam (o mesmo sucedeu em Évora), o Supremo Tribunal de Justiça, em 2013, acabou por julgar estarmos perante uma prova proibida, por violar o princípio da legalidade criminal.
Por outras palavras: por muito que o propósito fosse bom, nada na lei o regulava com a necessária suficiência, pelo que, ao invés do pretendido pelo autor da proposta, não bastava o art. 344.º do CPP e as “orientações” não eram leis da República, pelo que não podia um instituto jurídico ser aplicado sem lei alguma ou apenas com uma que tratasse de aspectos parcelares. Confesso que saudei a decisão do Supremo que veio afirmar um esteio essencial do Direito Criminal e do Estado de Direito. Tal não significa, porém, que não concorde com a ideia subjacente. Como tanta coisa no Penal, o princípio basilar parece-me político-criminalmente bem sustentado, mas necessita de uma regulamentação precisa que não deixe dúvidas a nenhum dos actores no processo. A certeza e segurança jurídicas são um dos fins últimos de todo o Direito, a par da Justiça.
O que nos diz a ENCC sobre o tema? Que nunca se irá negociar se o agente cometeu ou não o crime, mas sim a sanção, desde que em julgamento haja confissão integral e sem reservas do arguido. Mais: que não haverá limitação, i. é, qualquer delito, por mais grave que seja, pode ser objecto do dito acordo (o que já não sucedem em todos os Estados que conhecem idêntica figura); que a perda de bens obtidos ilicitamente ocorrerá sempre. Até aqui, nada a apontar. Ainda: que se terá de alterar o art. 344.º do CPP, pois que, nos crimes cuja pena aplicável seja superior a 5 anos, continua a produzir-se a prova, não sucedendo a passagem às alegações finais, com a dispensa de mais prova. Onde já se nos levantam dúvidas é no segmento “deverá ficar afastada uma configuração do instituto que premeie, através da redução da pena aplicável, quem colabore responsabilizando outro ou outros arguidos”. A intenção clara é, pelo menos aqui, negar a “colaboração premiada”, o que se saúda, mas, também, cremos, ter-se-á de manter a norma que exige que quando um dos co-arguidos não confesse, a prova se produzirá sempre, como se não tivesse ocorrido confissão dos demais, o que é um princípio basilar do nosso processo penal de estrutura basicamente acusatória, imposta pela CRP.
Muito fica ainda em aberto, sobretudo saber quem participa na negociação e com que papel e, sobretudo, que efeitos concretos terá para o arguido que confesse, pelo que uma posição mais definitiva exige um articulado específico que preferíamos conhecer já.