Tolerância à lactose alastrou-se depressa pela Europa
Para este trabalho, sequenciou-se e analisou-se ADN de combatentes da batalha de Tollense, na actual Alemanha, que aconteceu há mais de 3000 anos.
A capacidade de os humanos conseguirem digerir lactose no leite depois da infância alastrou-se pela Europa Central em apenas alguns milhares de anos. Esta é a conclusão de um artigo publicado na última edição da revista científica Current Biology. A equipa chegou a este resultado depois de ter comparado o ADN de combatentes de uma batalha que aconteceu há mais de 3000 anos na actual Alemanha com o de populações da Idade Média e actuais da Europa Central.
Há um gene que produz a enzima lactase, que é necessária para degradar a lactose, um açúcar que se encontra no leite. “Em todos os mamíferos, este gene é desactivado depois do desmame, então, em geral, os mamíferos adultos (incluindo os humanos) não conseguem ingerir muito bem o leite e são intolerantes à lactose”, explica ao PÚBLICO Krishna Veeramah, investigador da Universidade de Stony Brook (Estados Unidos) e um dos autores do trabalho.
Contudo, o investigador acrescenta que alguns humanos têm uma mutação perto desse gene que lhes permite ter uma persistência da lactase. A enzima continua assim a expressar-se em quantidade suficiente para degradar a lactose após o período de amamentação e, desta forma, a pessoa não tem sintomas de intolerância à lactose. Estima-se que entre 70% e 90% dos indivíduos com ancestralidade genética da Europa Central e do Norte tenham, pelo menos, uma cópia dessa mutação, o que faz com que consigam digerir leite.
Mas como é que esta mutação chegou até nós? Krishna Veeramah aponta que, provavelmente, essa mutação terá surgido há 20 mil anos. Em estudos anteriores, equipas de cientistas também tinham sugerido que a mutação se tenha espalhado pela Europa quando, no período Neolítico, se desenvolveu a agricultura e se começou a beber leite de ovelhas, cabras e vacas. Porém, através de análises ao ADN, estudos mais recentes já tinham visto que esta mutação não era muito frequente nos primeiros agricultores.
Uma equipa internacional de cientistas decidiu agora esclarecer melhor essa questão. Para isso, sequenciou e analisou o ADN de fragmentos de ossos de 14 guerreiros da batalha de Tollense, que ocorreu há cerca de 3200 anos na actual Alemanha. Esta batalha terá envolvido cerca de 4000 combatentes e quase um quarto deles morreu durante o conflito. Nos anos 90, foram encontrados vestígios dessa batalha que decorreu no vale de Tollense, no Norte da Alemanha.
Agora, percebeu-se que apenas um em oito desses supostos combatentes teria a variante genética que era capaz de degradar a lactose no leite. “Ao olharmos para o ADN dos guerreiros, somos capazes de mostrar que a mutação não estava muito presente na Alemanha há 3200 anos”, destaca Krishna Veeramah. Também se verificou que nos indivíduos da Europa e da Eurásia Ocidental ainda mais antigos do que os da batalha havia níveis baixos dessa mutação ou que não a possuíam de todo.
Depois, viu-se que populações do início da Idade Média correspondentes à actual Alemanha e Hungria tinham níveis bastante elevados dessa mutação. O mesmo se observou nos actuais europeus. Portanto, concluiu-se que a capacidade de se digerir (devido ao aumento desta mutação nas pessoas) alastrou-se depressa pela Europa em termos evolutivos.
Mais probabilidade de ter filhos
Krishna Veeramah conta que já havia algumas suspeitas de que a passagem da intolerância para tolerância à lactose na idade adulta humana se tivesse espalhado de forma rápida pela Europa, mas esses estudos apenas tinham analisado poucos indivíduos – ou alguns só tinham mesmo estudado uma amostra.
“O nosso estudo delimita o período de quando a persistência da lactase se espalhou pela Europa para algures entre há 3200 e 1500 anos [período que corresponde aos combatentes da batalha de Tollense e à população da Idade Média agora estudados]”, indica o investigador. “Esta é uma prova forte da selecção natural de Darwin a funcionar nos humanos.” Ao longo do estudo, estimou-se mesmo que os indivíduos com a mutação tinham 6% maior probabilidade de ter filhos do que as que não tinham essa variante genética, bem como que as crianças com a mutação também tiveram melhores possibilidades de sobreviver do que as que não tinham essa mutação.
E porque que é que a tolerância à lactose se alastrou pela Europa tão depressa? A resposta a esta questão ainda é um mistério para a equipa. Por agora, a melhor resposta que Joachim Burger, investigador da Universidade Johannes Gutenberg de Mainz (na Alemanha) que dirigiu o estudo, tem sobre o assunto é esta: “Com o leite a ser altamente energético e uma bebida relativamente descontaminada, a sua ingestão pode ter dado grandes possibilidades de sobrevivência durante períodos de escassez de alimentos ou quando as reservas de água potável estivessem contaminadas.”