O direito à “blasfémia”
É minha obrigação como cidadã de uma Europa que tem a liberdade de expressão como um dos seus fundamentos, defender esse direito, incluindo o mal denominado direito à blasfémia.
No primeiro dia deste mês de setembro, foi finalmente aberto em Paris o julgamento de 14 pessoas acusadas de cumplicidade nos actos de terror que causaram a morte de oito dos 12 jornalistas do jornal Charlie Hebdo, no dia 7 de Janeiro de 2015, e de mais quatro pessoas no supermercado judaico Hyper cacher.
Nesse mesmo dia em que se iniciou o julgamento, a equipe sobrevivente do semanário decidiu tornar a publicar as caricaturas de Maomé, as mesmas que deram origem ao assassinato cobarde de mais de metade dos seus jornalistas. “Não nos esconderemos nunca”, afirmou o actual director do jornal.
Não me compete a mim julgar se fizeram bem ou mal. Em contrapartida, é minha obrigação como cidadã de uma Europa que tem a liberdade de expressão como um dos seus fundamentos, defender esse direito, incluindo o mal denominado direito à blasfémia. E digo mal denominado porque a utilização deste epíteto pressupõe que a crítica ou mesmo o insulto a uma determinada fé religiosa seja considerada blasfémia por quem a pronuncia, quando na verdade o é apenas pelos seus próprios adeptos e, frequentemente, nem mesmo por todos eles.
Cada religião tem um significado especial e eventualmente sagrado para os indivíduos e para o colectivo que dela se reclamam. É algo que faz parte da sua relação com a espiritualidade que não é susceptível de discussão ou de julgamento. Em contrapartida, numa sociedade onde impera a liberdade de consciência, não se pode exigir das outras religiões ou de agnósticos e ateus a partilha do mesmo sentimento de sacralidade. Tal como o proselitismo é um direito das religiões que o exercem e defendem, também o direito à critica, mesmo a mais acerba, é um direito de todos, assim como o direito à resposta. Com apenas uma limitação, e face a ambas a intransigência deve ser total e absoluta: a violência e ou o seu apelo.
Não há religiões melhores ou mais “verdadeiras” umas do que as outras. Até porque não existem no abstracto: estão indissoluvelmente ligadas às culturas em que se desenvolvem, à história e à geografia dos povos que as partilham. São as culturas religiosas, no sentido lato, que moldam em grande parte o nosso eu profundo. Não há, do meu ponto de vista, “religiões universais”, apesar de muitas se pretenderem como tal.
A vida de Leonard Cohen, cuja biografia acabo de ler, é entre tantos outros, um claro exemplo disso mesmo. Cohen nasceu numa casa e numa família judaica, toda a sua infância decorreu num ambiente judaico e toda a sua vida se afirmou como judeu. E, no entanto, aos sessenta anos resolve tornar-se monge budista. Ter-se-á convertido ao budismo e abandonado o judaísmo? Não, simplesmente numa fase da sua vida foi atraído por um estilo de vida de que sentiu necessidade naquele preciso momento: calma, meditação, interioridade, fuga do bulício, disciplina, e encontrou-o junto de um monge budista de quem se tornara amigo… mas de vez em quando, Leonard voltava à cidade fazendo momentaneamente uma “pausa” no seu papel de monge e ao fim de cinco anos considerou-se “curado” regressando ao que nunca deixou de ser: judeu até ao fim, enterrado no cemitério judaico onde estão os seus familiares, produto à sua maneira da cultura que lhe deu origem, esteio fundamental da sua vida. Tal como o escreveu num poema em 1997: “Quem disser que eu não sou judeu, não é judeu. Lamento muito mas daqui não arredo pé (…).
Por tudo isto, confesso que estranhei o facto de há uns anos a presidente do Município de Paris, ter afirmado publicamente que o Ramadão é parte do património cultural francês, como justificação para o celebrar. Porque uma coisa é a liberdade que os muçulmanos, judeus, budistas e outros devem ter de praticar e de expressar publicamente a sua religião, outra completamente diferente é argumentar que essa expressão é livre porque faz parte do património cultural francês ou europeu. São duas coisas totalmente separadas e neste caso concreto trata-se de uma afirmação falsa.
As críticas à religião e às religiões de uma forma geral, nomeadamente as caricaturas podem incomodar, magoar, ferir e revoltar os seus adeptos e não só. Mas a única resposta possível é a contra-argumentação e a controvérsia, nunca a violência e em particular a violência terrorista.
Diz o ex-Grão Rabino de Inglaterra, Jonathan Sacks “o Sábio é sempre maior do que o Profeta”. Concordo plenamente…