Da dança solitária ao excesso do Entrudo, um baile para o Caminho
Anfiteatro do Castelo de Belmonte recebe a estreia do último espectáculo da Rede Artéria, com direcção artística da coreógrafa Filipa Francisco. Seguem-se apresentações na Guarda, em Coimbra e no Fundão.
Desde o início do século XX que o solo de Belmonte, vila entalada entre o maciço serrano da Estrela e a fronteira com Espanha, foi sendo revolvido em busca de volfrâmio, metal que haveria de alimentar artefactos como obuses, granadas e mísseis, utilizados com maior constância durante a Segunda Guerra Mundial. Em Caminho, a peça com direcção artística de Filipa Francisco que tem a sua estreia esta sexta-feira, ouve-se uma voz de um homem que, na década de 1960, foi paquete e praticante de escritório. Não aparece em palco, mas lê a carta de despedimento da companhia de minério onde começou a trabalhar aos 14 anos. As minas não haveriam de resistir muito mais e acabariam por fechar na década seguinte.
A sua voz é uma das raras falas que ecoam no anfiteatro ao ar livre do Castelo de Belmonte, onde nos próximos três dias se apresentará este espectáculo sem texto, em que o caminho se faz dançando. “Dançar aquilo que queria dizer”, resume Filipa Francisco ao PÚBLICO, para explicar o que levou Caminho a este resultado.
O trabalho começou em Janeiro de 2020. Estando o espectáculo integrado na Rede Artéria, que promoveu programação em oito municípios da região Centro ao longo de dois anos, o processo de criação pressupunha proximidade à comunidade local. As primeiras entrevistas foram feitas num centro de dia, a ex-trabalhadores das minas. Houve tempo para um workshop em Fevereiro, mas a chegada de Março e do novo coronavírus ao país acabou por ditar a suspensão dos trabalhos.
A peça, que se encaminhava para ser “sobre os movimentos do trabalho”, sofreu um desvio com o confinamento. Impedida de prosseguir as tarefas de campo, Filipa Francisco ficou em casa com dois vídeos: um de um baile comunitário em Colmeal da Torre, uma freguesia de Belmonte, e outro da Queima do Entrudo. “A minha pesquisa, de repente, mudou de direcção. Comecei a investigar sobre entrudos, sobre bailes, e a peça foi por aí, dadas as circunstâncias”, explica.
No Entrudo, interessou-se pelo “lado grotesco e pela sua fisicalidade, mas também por ter sido primeiro proibido e depois assimilado pela igreja”, conta. Para dar expressão a esse movimento, levou dois bailarinos de Lisboa e integrou elementos da região que chegaram ao projecto através do workshop de Fevereiro, entre os quais músicos e uma artista plástica.
Na peça, que em Belmonte terá uma apresentação por dia até domingo, e que depois seguirá para Guarda (dia 12), Coimbra (dia 19) e Fundão (dia 26), há três bailes: o que desapareceu, o do trabalho e o do Entrudo. O primeiro está relacionado com estes tempos e com a questão de como dançar sem proximidade. “Dançamos num baile imaginário”, responde Filipa Francisco, detalhando como o colectivo improvisou a partir das limitações pandémicas.
A dança do trabalho explora a mecanização do movimento. É repetitiva, automatizada, tal como o labor industrial que vai desaparecendo em regiões de baixa densidade, mais habituadas a ver partir pessoas do que a vê-las chegar. No fim, com o Entrudo, vem o exagero, “um movimento mais excessivo e menos bonito”, explica a directora artística, que também assume o papel de intérprete. De novo, há aqui um ponto de contacto com o dito novo normal, com a entrada em cena das máscaras. Tendo como referencial a tradição local do Entrudo, a figurinista Carlota Lagido desenhou as máscaras que o artesão Fernando Nelas executou em cestaria.
Já perto do fim de Caminho, depois de surgirem tambores que assumem a cadência de todas as romarias que não puderam sair à rua este ano, forma-se um bizarro animal de tecido com pessoas dentro. “E aí, estamos juntos, nesta comunidade provisória que temos aqui em Belmonte”, descreve Filipa Francisco.