O pesadelo americano
A convenção republicana tem sido palco para o expor pornográfico da mentira, da distorção e do engano.
Nas cartas ao director da edição de ontem no New York Times havia esta pequena epistola: “No seu discurso na convenção republicana na segunda-feira à noite, Natalie Harp, uma sobrevivente ao cancro, fazia referência ao filme It’s a Wonderful Life [Do céu caiu uma estrela, na versão portuguesa], comparando Donald Trump a George Bailey, o protagonista do filme, representado pelo meu pai, Jimmy Stewart.
Dado que este amado clássico americano é sobre decência, compaixão, sacrifício e a luta contra a corrupção, a nossa família considera que a analogia de Ms. Harper é o cúmulo da hipocrisia e desonestidade”. Assinado, Kelly Stewart Harcourt Davis, Califórnia.
Comparar esse exemplo de esperança e bondade que encarna o american dream na personagem de Jimmy Stewart, com a estrela de televisão milionária que herdou a fortuna do pai e que se tem notabilizado pela capacidade de dividir um país em vez de o unir, é a imagem da perfeita da distopia orwelliana em que se transformou a política norte-americana sob a égide de Trump.
A convenção republicana tem sido palco para o expor pornográfico da mentira, da distorção e do engano. Do ridículo de uma citação inventada de Abraham Lincoln, ao absurdo de proclamar o sucesso da luta contra o covid-19, quando os Estados Unidos têm dos piores registos do mundo, ao assumir para Trump de medidas legislativas que foram da autoria de Obama ou de atacar os democratas por quererem deixar de financiar a polícia quando o seu candidato, Joe Biden, não defende nada disso, tudo cabe na reunião de um partido que parece ter deixado de existir. O que vemos é um partido que não tem mais programa que o seu candidato, que tem uma relação particular com a verdade: a verdade é o que ele quiser que seja.
Vejam-se os tumultos que levaram milhares à rua nos últimos tempos por causa da questão racial e que não conseguem obter uma palavra de compreensão do presidente norte-americano. Para ele, estes americanos são o inimigo e o contra manifestante que matou duas pessoas munido de metralhadora deverá ser porventura, como defendeu um dos seus mais acérrimos defensores, objecto de compreensão.
Que interessa que ainda ontem o jornal The Guardian tenha publicado um estudo que mostra que os “antifa” sejam responsáveis por zero mortes nos últimos 25 anos e, no mesmo período, a extrema-direita tenha provocado 329 vítimas. Para Trump os primeiros é que são a ameaça “fascista”.
É neste o país dividido, torcido, amargo que se transformou a terra dos sonhos. E como é seu apanágio antecipar tendências, convém estar muito atento.