Rumores e curas falsas para a covid-19 partilhadas online já causaram centenas de mortes

Mais de 800 pessoas já morreram devido a desinformação sobre a covid-19. Grande parte da desinformação circula no Facebook, apesar dos esforços da plataforma para a erradicar.

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Ao longo do último ano, uma rede de 82 sites com desinformação médica gerou 3,8 mil milhões de visualizações no Facebook Adriano Machado/Reuters

Pelo menos 800 pessoas em todo o mundo morreram e outras cinco mil ficaram hospitalizadas depois de consumir doses elevadas de álcool concentrado numa tentativa de matar o vírus que causa a covid-19. Das pessoas que experimentaram beber metanol, 60 ficaram cegas. Leram sobre “a cura” online, diziam. Estava em publicações com milhares de gostos partilhadas nas redes sociais.

Os casos são detalhados num estudo que foi publicado este mês na revista académica American Journal of Tropical Medicine and Hygiene. Ao todo, os investigadores monitorizam hospitalizações e mortes associadas a 2311 relatos de desinformação (incluindo rumores, notificas erradas e teorias da conspiração), oriundos de 87 países e escritos em 25 línguas, a circular no Facebook, Twitter, jornais online e sites de verificação de factos entre Dezembro de 2019 e Abril de 2020.

“Queríamos perceber o impacto da desinformação partilhada nas plataformas para a saúde pública”, resume ao PÚBLICO Saiful Islam, um dos investigadores que participou no estudo liderado pelo Centro Internacional para Pesquisa de Doenças Diarreicas (ICDDRB, na sigla inglesa), em Bangladesh.

Até agora, muitos dos estudos olhavam apenas para a quantidade de informação vista e partilhada, mas não para as causas directas da desinformação.

Conclusão: as notícias falsas matam. “Os rumores podem mascarar-se como estratégias credíveis de prevenção”, lembra Saiful Islam. “Se as pessoas seguirem as recomendações falsas, podem morrer.”

Além dos casos de excesso de álcool, na Índia, 12 pessoas (incluindo crianças) ficaram doentes depois de beber licor de datura, outra alegada cura para a covid-19 (desta vez vinda da raiz de uma planta tóxica). Um homem suicidou-se por achar que tinha contraído o vírus e não querer infectar a família. E na Correia do Sul, centenas de crentes numa igreja foram infectados depois de levar com um spray de água com sal que os devia proteger do vírus (a boca de uma garrafa foi colocada no interior da boca de um crente que depois foi confirmado como infectado, explicou um oficial na região).

Somam-se preconceitos difundidos online sobre grupos de pessoas que alegadamente transportam o vírus: na Ucrânia, por exemplo, alguns cidadãos tentaram bloquear as estradas para impedir a passagem de autocarros que transportavam dezenas de passageiros evacuados de Wuhan (o epicentro da covid-19).

“Obviamente, o impacto da desinformação varia em diferentes países”, reconhece Saiful Islam. “Os países onde a população tem rendimentos mais baixos poderão ser mais afectados devido ao controlo limitado da desinformação que circula nas plataformas online”, explica o investigador. “As pessoas com fraca alfabetização são mais susceptíveis de seguir práticas perigosas, uma vez que têm um acesso muito limitado a informação baseada em provas.”

O objectivo da investigação, sublinha Islam, era “juntar algumas provas do impacto real [das notícias falsas] para que agências de saúde nacionais e internacionais comecem a dar prioridade ao tema.”

Facebook é apontado como o principal culpado

Embora a equipa de Bangladesh não consiga identificar a plataforma online que mais contribui para a desinformação, há vários estudos que apontam para o Facebook.

Um relatório recente da Avaaz, uma organização que centra a sua acção na recolha de assinaturas online em favor de causas internacionais, publicado esta semana, mostra que os dez principais sites visitados com desinformação e teorias da conspiração sobre a covid-19 recebem quatro vezes mais atenção quando são partilhados no Facebook.

Ao longo do último ano, uma rede de 82 sites com desinformação médica gerou 3,8 mil milhões de visualizações no Facebook. A popularidade destas páginas no Facebook atingiu o pico em Abril (com 460 mil visualizações), um mês após o começo do isolamento social global em massa.

A Avaaz acredita que o Facebook podia ter feito mais para combater o problema. “[Os nossos dados] sugerem que quando os cidadãos mais precisavam de informação de saúde credível, e numa altura em que o Facebook estava a tentar destacar os perfis e páginas de instituições de saúde legitimas, o algoritmo da plataforma estava podia estar a minar os esforços”, lê-se no relatório.

Segundo o Facebook, isto não devia acontecer. Mark Zuckerberg explica que quando uma publicação na rede social é legendada como “falsa” ou “dúbia” por organizações de verificação de factos, essa publicação é despromovida e perde perto de 80% das futuras visualizações.

Só que a Avaaz descobriu que o efeito é mitigado quando as publicações são traduzidas, ou partilhadas com menos texto. “Uma forma de contornar o processo de rotulagem de informações falsas do Facebook é republicar o conteúdo de desinformação total ou parcialmente, ou traduzi-lo”, conclui a equipa da Avaaz. “Estas descobertas apontam para uma lacuna na capacidade do Facebook detectar clones e variações de conteúdos que passaram pelo processo de verificação de factos.”

Facebook: há 98 milhões de publicações com avisos

Contactada pelo PÚBLICO, a equipa do Facebook elogia o trabalho da Avaaz — “Partilhamos o objectivo de limitar a desinformação”, lê-se num comunicado enviado por email —, mas diz que o relatório da organização não reflecte os esforços que a empresa tem feito por remover desinformação sobre a covid-19 nas suas plataformas que incluem a rede social Facebook, o Messenger, o WhatsApp e o Instagram.

Em Maio, por exemplo, o Facebook lançou um chatbot no WhatsApp para desmistificar mitos e notícias falsas sobre a covid-19. É consultado diariamente por cerca de 60 mil pessoas em todo o mundo, e também já fala português.

“Graças à nossa rede global de verificadores de factos, entre Abril e Junho, colocámos avisos em 98 milhões de peças de desinformação sobre a covid-19 e removemos sete milhões peças que podiam causar perigo iminente”, acrescentou um porta-voz do Facebook. “Sempre que alguém tenta partilhar uma hiperligação sobre a covid-19, aparece um alerta para as conectar a informação credível.”

O PÚBLICO, porém, não recebeu nenhum alerta quando experimentou publicar um link com informação dúbia sobre a covid-19 (o Facebook ficou de explicar o motivo).

A equipa de Saiful Islam acredita que é preciso existir uma maior colaboração entre as agências de verificação de factos e as redes sociais. “Monitorizar dados das redes sociais tem sido identificado como o melhor método para acompanhar os rumores em tempo real”, justificam os investigadores. “As agências nacionais e internacionais, incluindo as agências de verificação de factos, não devem apenas identificar rumores e teorias da conspiração para as desmascarar. Devem envolver as empresas de comunicação social para difundir correctamente a informação.”

E deixam um alerta: “A proliferação de teorias da conspiração médicas pode levar a uma desconfiança face ao governo e autoridades de saúde que pode influenciar a atitude das pessoas sobre a saúde, nomeadamente ao evitar testes para diagnosticar a covid-19.”

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