No Iraque, equipas de futebol com cristãos e muçulmanos ajudaram (um pouco) à coesão social

Investigadora da Universidade de Stanford (EUA) quis estudar e reconstruir a coesão social no Iraque através da inclusão de jogadores amadores de futebol cristãos e muçulmanos na mesma equipa.

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Jogo de futebol num campo de refugiados no Iraque. O futebol foi usado como ferramenta para a coesão social num estudo publicado na Science Ari Jalal/Reuters

Depois dos ataques do Daesh no Iraque em 2014 – em que cristãos foram perseguidos –, a investigadora Salma Mousa queria reconstruir a coesão social entre cristãos e muçulmanos. Para isso, colocou nas mesmas equipas de futebol cristãos e muçulmanos. Ao avaliar os comportamentos dos jogadores durante e depois de competições, percebeu que os cristãos ficaram mais tolerantes com os muçulmanos com quem jogavam. Contudo, o mesmo não se estendeu aos restantes muçulmanos. Os resultados desta experiência foram publicados na edição desta semana da revista Science.

Em 2014, no Iraque sob o domínio do Daesh, cristãos e outras minorias foram violentamente expulsos das suas casas e sujeitos a várias atrocidades. Aos poucos, entre 2016 e 2018, começaram a voltar às suas casas e encontraram cidades arruinadas. “Muitos cristãos acreditam que os seus vizinhos muçulmanos foram cúmplices das anteriores invasões do Daesh, o que contribuiu para grandes níveis de desconfiança”, realça-se num comunicado sobre o trabalho.

Salma Mousa, que está a fazer o pós-doutoramento na Universidade de Stanford (nos Estados Unidos), pretendia devolver a confiança que teria existido antes da guerra e fez um projecto baseado na chamada “hipótese do contacto” – uma teoria que sugere que os preconceitos sociais entre os grupos podem ser atenuados através da própria cooperação entre os grupos.

Com base nessa teoria e em parceria com uma organização local iraquiana, Salma Mousa criou quatro novas ligas de futebol amador com 51 equipas que já existiam e competiam noutras ligas no Iraque. Para avaliar o contacto entre diferentes grupos, foram colocados nas mesmas equipas tanto jogadores amadores cristãos como muçulmanos. Em três ligas havia sete equipas só com cristãos e outras sete equipas com cristãos e muçulmanos. Numa quarta liga só existiam equipas de cristãos. Os nomes da liga e das equipas não pode ser revelado para proteger o anonimato dos jogadores, diz Salma Mousa.

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A investigadora Salma Mousa com uma das equipas DR

Numa conversa com os jornalistas, Salma Mousa recorda que inicialmente os participantes se mostraram relutantes em relação a esta ideia. “Havia uma grande hesitação em incluir pessoas de diferentes grupos [nas equipas], sobretudo porque se estava a quebrar uma norma social. Até jogar futebol com pessoas de outros grupos [religiosos] era um tabu”, conta. Antes de se iniciar o estudo, apenas duas das 51 equipas tinham treinado juntas. Para que os jogadores não se sentissem desconfortáveis, houve conversas com os treinadores e capitães das equipas sobre o estudo.

Depois de esclarecidas todas as questões, Salma Mousa analisou as atitudes e comportamentos dos jogadores durante as ligas e seis meses após o final das competições. Percebeu então que os cristãos com muçulmanos na mesma equipa tinham atitudes de maior confiança com os seus colegas muçulmanos do que os cristãos em equipas só com jogadores cristãos.

Por exemplo, os cristãos de uma equipa mista tinham uma probabilidade 26% maior de votar num jogador muçulmano para que este recebesse um prémio de desportivismo, e uma probabilidade 49% maior de treinar com um muçulmano seis meses depois de a liga ter terminado. Este efeito foi maior em equipas com melhores resultados, o que para Salma Mousa pode significar que este foi um dos contributos para a mudança de comportamento dos jogadores cristãos.

Uma ferramenta prática

“Os jogadores começaram a ficar mais agradáveis uns para os outros, as equipas começaram a criar ligações, e novas amizades surgiram como resultado das ligas, o que ajudou a criar uma nova norma de aceitabilidade entre equipas inter-religiosas”, resume Salma Mousa.

Contudo, esta confiança não se estendeu aos muçulmanos fora deste contexto. Isto é, as mudanças comportamentais observadas nas ligas de futebol não se observaram noutros contextos com muçulmanos que lhes eram estranhos, como num restaurante ou num evento social. Por isso, destaca-se no artigo científico, que é capa da Science: “Embora o contacto possa construir comportamentos de tolerância entre pares através de uma intervenção, a construção de uma maior coesão social fora [desse contexto] é mais difícil.”

Num comentário ao trabalho também publicado na Science, Elizabeth Paluck e Chelsey Clark (ambas da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos) referem que uma das razões para a mudança de comportamento não se ter estendido a toda a comunidade foi porque as mudanças observadas se limitaram a comportamentos e não a atitudes. Sugerem assim que se façam mais estudos para se desvendar se as atitudes são mais difíceis de mudar do que os comportamentos ou se este trabalho não analisou as atitudes correctas.

As duas cientistas esperam agora que se realizem mais trabalhos deste género para que surjam conclusões bem consistentes: “As respostas generalizadas só surgirão depois de mais trabalho experimental que poderá até parecer uma aplicação política, mas, na verdade, é ciência básica a funcionar sistematicamente para que haja conclusões robustas.”

Sebastian Chaskel, director do programa de paz da organização Inovações para a Acção contra a Pobreza e que não fez parte do trabalho, alerta que cerca de 80 milhões de pessoas no mundo estão deslocadas devido à violência e aos conflitos, o que mostra a necessidade de estudos sobre como se pode reconstruir a coesão na comunidade. Para si, estratégias como a deste trabalho devem ser cada vez mais usadas: “Este estudo dá-nos uma ferramenta prática para cicatrizar as feridas entre as comunidades que frequentemente ficam depois dos conflitos.” Outros trabalhos deste tipo estão a ser feitos em colaboração com organizações não-governamentais no Líbano, na Colômbia ou na Venezuela.

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