Alice Vieira juntou-se a Nélson Mateus para mostrar como a relação entre avós e netos é importante

Com 60 anos de carreia nos jornais e 40 nos livros, a autora Alice Vieira associou-se ao projecto Retratos Contados de Nélson Mateus em que se procura a partilha entre gerações.

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Alice Vieira foi das primeiras entrevistadas de Nélson Mateus para o projecto Retratos Contados Nuno Ferreira Santos

É inevitável. A gargalhada de Alice Vieira contagia qualquer um. A energia com que reconta as (muitas) histórias da carreira enquanto jornalista faz esquecer que já se passaram 60 anos desde que entrou para a profissão. “Se me tirassem os jornais, eu morria”, afirma categoricamente. Apesar de ter deixado as redacções em 1990, ainda hoje continua a publicar na imprensa nacional. Já assinou dezenas de obras, desde juvenis a colecções de poemas, mas nunca quis ser escritora. Tanto que a publicação do primeiro livro, Rosa, Minha Irmã Rosa, em 1979, uma história pensada com os filhos, deve-se ao então marido Mário Castrim, jornalista e crítico de TV.

Hoje, o tempo de Alice divide-se entre Lisboa e a Ericeira, terra a que chama a sua “pátria”. Além do tempo que dá a jornais e livros, associou-se há cinco anos ao Retratos Contados. O objectivo passa por “valorizar a relação entre avós e netos e lutar contra o abandono e solidão dos mais velhos”, explica Nélson Mateus, o criador do projecto, que tem entrevistado figuras como Ruy de Carvalho, Filipe La Féria ou José Avillez para falarem sobre os seus avós.

Alice Vieira foi uma das primeiras entrevistadas e a “química” que sentiram fez com que agora se tratem por “avó” e “neto”. Em entrevista conjunta ao PÚBLICO, consideram que um dos perigos trazidos pela pandemia foi o sentimento de solidão e, também por isso, as redes sociais e a tecnologia foram importantes para encurtar a distância. Foram as lições do “neto” Nélson que puseram a “avó” Alice a ver filmes na Netflix até às duas da madrugada e a fazer videochamadas pelo Facebook durante o confinamento. Se é importante que os netos aprendam com os avós, também os avós devem procurar aprender com os netos. Isto, porque “os velhos não querem falar de assuntos de velhos”, lembra a avó de quatro netos, aos 77 anos.

A Alice foi uma das primeiras entrevistadas para o projecto Retratos Contados. Mas o Nélson nunca tinha lido nenhum dos livros da Alice. O que é que motivou a conversa na altura? E como é que a relação evoluiu para que agora sejam parceiros no projecto?
Nélson Mateus (N.M.) – Os Retratos Contados nasceram há cinco anos para falar sobre a valorização da relação entre avós e netos e para lutar contra o abandono e solidão dos mais velhos. Eu conhecia a Alice desde sempre. Era uma das pessoas que queria muito entrevistar, apesar de nunca ter lido um livro dela. Quando a Alice começou a escrever, fê-lo para os filhos e eles são da mesma idade que eu. Portanto, quando acabei a escola, ainda os livros não tinham sido publicados. Mas, neste projecto, tenho conhecido avós extraordinários e o que me sensibiliza são as pessoas e não a obra, a carreira ou o mediatismo. Nessa entrevista, a Alice falou da importância que os avós tinham tido (ou não) na vida dela. Ela diz que foi a criança que mais cedo saiu de casa dos pais. Com 15 dias foi viver com uns tios. Eu fiquei deslumbrado com uma mulher que tinha tudo para ser infeliz, mas na verdade tem esta gargalhada. Hoje é avó de quatro netos... 
Alice Vieira (A.V.)  Extraordinários!
N.M.  Uma avó que tem 80 livros publicados, que escreve para tudo o que é jornal, uma avó que faz crochet. Acho que existe uma química ou uma empatia que as pessoas têm à primeira vista e essa existiu entre nós. Ela deu-me o seu número de telefone depois da entrevista e eu julgava que aquilo iria ficar por ali, mas não foi o que aconteceu. No mesmo dia da entrevista eu tinha um pedido de amizade no Facebook. A partir daí esta nossa relação foi sempre em crescendo.

A Alice é a única a quem chama “avó”. Deve-se a esta química que existiu entre ambos?
N.M.  Não estamos juntos diariamente, mas falamos todos os dias. Temos sempre imensa coisa para contar um ao outro e às vezes falamos três e quatro vezes ao longo do dia. Uma das coisas que admiro muito na Alice é o facto de ser muito prática, como eu por exemplo, nós nunca começamos uma mensagem ou uma chamada com o “olá, está tudo bem?”. Eu acho isso extraordinário numa mulher de 77 anos. Nós não fazemos favores um ao outro. Se a Alice precisa que eu a acompanhe aqui ou ali, eu vou e depois cada um vai à sua vida. 
A.V.  Eu posso pedir-lhe tudo que ele, se puder, faz, mas, se não puder, não faz. É uma relação muito boa e por isso ele chama-me “avó” e eu também lhe chamo “neto”.

Os entrevistados do projecto têm todos boas relações ou memórias dos seus avós. Falam com nostalgia. Há alguma característica transversal a todos eles? Nem todos temos dessas relações com os nossos avós...
A.V.  De certa forma isso é muito dependente do que os avós fazem com os netos. Muitas vezes a casa dos avós é a extensão do ATL.
N.M.  A casa dos avós não pode ser um depósito dos netos.
A.V.  Não pode. Por isso nós também temos de os ajudar em alguma coisa. Aquilo que eu sempre fiz com os meus netos foi contar-lhes coisas que os pais não lhes contavam. Eu nunca estive muito tempo com os meus netos, porque também tenho uma vida ocupada. Quando eram mais pequenos e vinham para a minha casa, tínhamos de fazer planos. Se eu estivesse num sítio a trabalhar e eles estivessem na sala a ver televisão, isso não tinha piada nenhuma. O professor João dos Santos, psiquiatra e psicólogo, dizia sempre que é muito importante haver uma geração de permeio. Aquilo que uma pessoa diz a um neto pode não ser aquilo que diz a um filho. Aquilo que eu conto à minha neta não conto aos meus filhos. Há uma cumplicidade entre nós. Temos uma geração entre nós e isso faz toda a diferença, mesmo nas conversas.

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Sempre descreveu o mundo do jornalismo como uma correria constante. Teve mais tempo para os netos do que para os filhos?
A.V.  Isso é tão verdade. Ainda assim, quando ia entrevistar alguém ou fazer uma reportagem, aproveitava e levava-os. Hoje isso é impensável. Mas é verdade que eu tive muito menos convívio com os meus filhos. Quando entrei para o jornalismo, no Diário de Lisboa, toda a gente estava zangada comigo e com o meu marido, ninguém nos falava e não tínhamos ninguém com quem deixar a bebé. Por isso, eu levava-a para o jornal numa alcofa. Uma vez quase que nem a encontrava no meio da papelada toda. Tanto que o padrinho dela, o chefe da tipografia, ficava muitas vezes com ela, porque eu tinha de ir trabalhar. Ninguém faria isso hoje em dia. Os meus filhos sempre aceitaram e perceberam quando não estava, porque depois compensava. Com os meus netos, quando eu pensava que ia ter mais tempo, foram para o estrangeiro. (Risos)

Pode-se dizer que a sua filha Catarina Fonseca também notava aquilo a que a Alice chama “cheiro a chumbo” na redacção e por isso hoje também é jornalista?
A.V.  Devia notar com certeza. Mas eu julgo que se lhe dissessem para ela parar com os jornais e se dedicar só aos livros, acho que seria o que ela faria. Eu não. Se me tirassem os jornais, eu morria. Mas eu acho que os jornais hoje não têm nada que ver com a altura em que entrei. Com os computadores, as pessoas deixaram de se falar. As redacções eram uma berraria, antigamente. E as máquinas de escrever! Quando vieram os computadores, uma quantidade deles avariou-se, porque estávamos a escrever e, sem nos lembrarmos que aquilo não era à máquina, batíamos no monitor como se estivéssemos a avançar o papel. (Risos) Tínhamos um colega, o Humberto Vasconcelos, que gravou o som de escrever à máquina e depois punha a tocar para ter aquele barulho de fundo.

Regressando aos netos, destas entrevistas vai surgir um livro?
N.M.  O objectivo é que as experiências contadas pelos entrevistados sirvam para mostrar que os mais velhos têm de ser valorizados. Não só os mais velhos, como a ligação entre as duas gerações. Nós antigamente, quando queríamos deixar a roupa mais branca, ligávamos à avó, hoje vamos à Internet. Mas aquela avó continua ali. Se não nos preocuparmos que essa sabedoria, aquela pessoa acaba por ser desvalorizada. A solidão é isso também. Em Portugal é como se as pessoas, a partir de uma determinada idade, deixassem de ter capacidade e isso não pode acontecer.
A.V.  E também pode acontecer ao contrário: os avós aprenderem com os netos. Eu sou perita em tecnologia, mas antes da pandemia era uma desgraça. Tinha de chamar a minha neta para ela me resolver os problemas do computador. Eles já nasceram com as tecnologias e têm muito que nos ensinar.

São nativos de épocas diferentes?
A.V.  Exactamente. Se não, estamos a criar uma geração que sabe muito de computadores, por exemplo, mas não sabe mais nada. Como somos de gerações diferentes, temos de aprender e ensinar.
N.M.  Durante a pandemia, pelo menos uma vez por semana eu vinha visitar a Alice. Um dia disse-lhe que podia fazer videochamadas pelo Facebook.
A.V.  Ainda ontem fiz uma videochamada para a minha neta em Inglaterra.
N.M.  São coisas tão simples. A Alice não oferece muita resistência à mudança. 

Mas isso não foi o que aconteceu com a máquina de escrever...
A.V.  (Risos) Isso foi outra história. Foi a única coisa a que resisti. Vocês são muito novos. Não percebem a afeição à máquina. Foram muitos anos. Achava que o computador era uma coisa muito complicada. Até que a minha filha um dia convenceu-me. Agora nem sei como passei tanto tempo sem computador. Mas tenho a minha velha máquina em exposição para olhar para ela. Há uns anos o meu neto veio cá e eu estava a escrever à máquina. Ele estava habituado a ver toda a gente nos computadores e disse-me: “Avó, essa máquina é melhor do que os computadores. Tu escreves e imprime logo!” (Risos)

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Essas são as pequenas coisas que mostram a importância da relação entre avós e netos?
N.M.  Claro, até porque os mais velhos têm uma grande necessidade de falar de outros assuntos.
A.V.  Os velhos não querem falar de assuntos de velhos. Eu estive num jornal, o Sénior, só estive lá um ano. Eles queriam falar de coisas como aparelhos auditivos. (Risos)
N.M.  As pessoas têm de se saber reinventar. Vamos olhar para a Simone de Oliveira. Tem 82 anos e 60 de carreira. Quando ela começou a cantar, ainda não havia a Ponte 25 de Abril nem o Cristo-Rei. Hoje, passados esses 60 anos, está a cantar com a Marisa Liz, com o FF, com a Áurea e as gerações mais novas vão aprender aquelas músicas que fazem parte de uma vida inteira. Se um grupo de velhos se encontra, vão falar dos netos, das doenças ou da viuvez, não há mais assuntos. É muito mais interessante, se houver a junção das duas gerações. Se a casa dos avós não for um depósito de netos, a avó vai passar a sabedoria e tradições para os netos e os netos podem ensinar a avó a usar a Internet. 
A.V.  E os velhos são velhos cada vez mais tarde. No outro dia vi um jornal dos anos 1930 em que se dizia num artigo que tinha sido atropelada “uma idosa de 40 anos”. (Risos)

Quem é que faz mais resistência? São os mais novos que não querem saber dos mais velhos ou os mais velhos que não querem aprender com os mais novos?
A.V.  Acho que são os mais velhos.

É a inércia?
A.V.  Sim, é um pouco isso.
N.M.  Nós não somos nenhuns velhos do Restelo e não falamos com saudosismo. Não temos nenhum problema com o que vem a seguir e não temos resistência ao futuro. Não podemos é ignorar e branquear o passado.
A.V.  Quando me começam a dizer que antes é que era bom, apetece-me mandar calar. Está bem que temos muita coisa mal e que temos de fazer melhor. Mas, se fosse antes do 25 de Abril, para já, nem podíamos estar aqui os três a conversar. Quem não viveu a censura, não viveu a ditadura, às vezes não entende isso. É também essa uma missão dos mais velhos. Quando vou às escolas, levo sempre recortes de jornais censurados para eles perceberem o que acontecia. Uma vez, no Diário de Lisboa, a censura cortou toda a primeira página. Toda. Naquela altura não havia estas tecnologias. No dia a seguir, o jornal saiu com a primeira página toda com receitas de cozinha. Claro que eles não eram burros e no dia seguinte cortaram ainda mais. Mas isso fazia com que as pessoas percebessem. Havia um entendimento entre os leitores e os jornais. Quando a censura acabou, nós já estávamos tão formatados que até tínhamos dificuldade em escrever sem ela. E isso é importante de passar aos mais novos. As democracias não são eternas e temos de ver o caminho que as coisas podem tomar.

A Alice já disse que sente uma necessidade enorme de sair de casa. Como é que viveu o período de confinamento?
A.V.  Quando o vírus começou a aparecer em Portugal, e como sou uma pessoa de risco que já teve uma data de cancros e tenho 77 anos, fiquei logo em casa. Em Março já estava fechada. Mas eu sempre tive muita coisa para fazer. Textos para os jornais, livros para terminar. Outra coisa que aprendi foi a usar a Netflix. De tal maneira que eu raramente me deitava antes das duas da madrugada. Custava-me muito não ter um café para ir de manhã, mas era assim mesmo.

Nunca quis ser escritora, mas já publicou dezenas de livros.
A.V.  São 80. Ou mais. Eu explico: quando me perguntam a profissão, eu digo que sou jornalista, mas também escrevo livros. Se o meu patrão dos livros me dissesse para parar, eu parava logo.

Se fosse o chefe de redacção, já não seria assim...
A.V.  Esse nem pensar. Os meus filhos, quando eram mais pequenos, queixavam-se que eu nunca estava em casa e que nunca escrevia nada para eles. Um dia sentámo-nos e escrevemos uma história. Quem nos conhece sabe que aquela história é sobre nós, sobre a nossa casa, a escola deles. Eles gostaram muito, mas eu disse-lhes para não me pedirem para repetir.

Está a falar do Rosa, Minha Irmã Rosa?
A.V.  Sim. A partir daí nunca mais parei.

Contudo, nem foi a Alice que decidiu publicar o livro...
A.V.  Exactamente. Eu nunca pensei que aquilo iria ser publicado. Era o Ano Internacional da Criança e a editora Caminho lançou um prémio em que a melhor história que recebesse seria editada. Foi o meu marido que mandou o texto. Um dia estava no jornal e recebi um telefonema a dizer que tinha ganho um prémio e nem sabia que tinha concorrido. Quando um livro é premiado, vende. E o editor continuou a pedir mais. Agora tenho um para acabar, a biografia do Padre António Vieira. Está muito actual…

O que achou quando a estátua foi vandalizada?
A.V.  Atenção que o livro já estava a ser escrito antes disso. Acho que o que aconteceu foi sobretudo ignorância, não foi mais do que isso. As pessoas sabem lá quem foi o Padre António Vieira.

Grande parte da sua obra é dedicada aos mais jovens. Porém, descreve muitas vezes a sua infância como tendo sido muito complicada. Há aqui uma relação?
A.V.  Eu sou uma optimista. Eu podia ter-me ido abaixo. Nós somos três irmãos e a minha mãe deu-nos a todos. Eu lembro-me perfeitamente que quando as velhas que me criaram me mandavam chamar, e nunca era para nada de bom, eu pensava: “Elas matar não me matam. Então vamos lá.” E aguentava. Também me lembro de pensar para mim que nunca me iria esquecer daquilo – porque as pessoas crescem e dizem que as suas infâncias foram sempre tão boas. Muito daquilo que eu escrevo tem que ver com a minha infância. Praticamente não há mães nem avós nos meus livros. Há tias que nunca mais acabam. Quando escrevi o Meia Hora para Mudar a Minha Vida havia uma mãe muito boa na história, mas eu matei-a. (Risos)

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E ainda assim há este projecto dos avós. Sente que pode encontrar algo que nunca teve?
A.V.  Sim. Eu nunca conheci os meus avós, eles já tinham morrido quando eu nasci. O professor João dos Santos dizia sempre que uma criança não pode sobreviver sem ter uma avó e sem ter uma aldeia. E, se não as tiver, tem de as inventar. Estou sempre a dizer que foi isso que eu fiz. Eu escolhi uma avó, que foi uma mulher extraordinária com quem depois fui viver para Paris.

A jornalista Maria Lamas?
A.V.  Exactamente. Ela impediu-me de fazer muitas asneiras. Estou-lhe muito grata até hoje. Foi a grande avó que tive. Da aldeia eu não precisei.

Hoje, a sua “aldeia” é a Ericeira?
A.V.  A minha aldeia? A minha pátria! (Risos) A aldeia de onde era a minha mãe e as minhas avós fica ao pé de Torres Novas. Chama-se Lapas. Não vou lá muitas vezes, não me sinto muito bem. Os sítios onde a minha mãe esteve ou morou fazem-me muito mal. Não sei porquê. Quando regressei de Paris, em 1968, não encontrei casa em Lisboa e fui viver para a Ericeira. A minha casa lá tem uma varandinha que dá para o mar. É lindo.

A Alice considera a sua conta no Facebook o seu quintal e só entra lá quem autoriza. Foi uma forma de se ligar às pessoas durante o confinamento?
A.V. – O que seria de nós durante esta pandemia, se não fossem as novas tecnologias! Foram uma grande ajuda. Não gosto quando as pessoas dizem que não querem ter Facebook, porque quebra a sua privacidade. Quebra mediante o que lá se puserem, como é claro. É muito bom para encontrarmos pessoas, para nos animarmos. Por isso, eu acho que essas redes deveriam ser muito mais trabalhadas com as pessoas mais velhas.
N.M.  ​Se esta pandemia tivesse sido na altura em que não havia telefones, em que não havia redes sociais e em que só havia dois canais de televisão, tinha sido muito mais complicado.
A.V.  Teria sido terrível. O grande perigo da pandemia, para além dos contágios, era a solidão das pessoas. Eu digo sempre que uma das coisas que mais me custaram nesta pandemia foi não poder dar beijos e abraços aos meus netos. Mas teve de ser.

A tecnologia reduziu a distância e é também muito importante no jornalismo hoje em dia. A Alice trabalhou em períodos como o 25 de Abril, por exemplo. O que é que se poderia ter feito na altura com os instrumentos que estão hoje disponíveis?
A.V.  Eu penso muitas vezes nisso. Se houvesse telemóveis, talvez nem sequer se fizesse a revolução. Quando percebessem que se passava alguma coisa, ligavam uns aos outros. Tudo ia ser diferente. Muitas coisas que nós fazíamos, hoje se calhar já não se faria. Por exemplo: telefonarmos para colegas de outros jornais a dizer que estava a acontecer isto ou aquilo.

Essa camaradagem perdeu-se?
A.V.  Perdeu-se algo, sim, mas talvez não seja bem a camaradagem. As coisas estão muito diferentes. Hoje em dia entram para a profissão com cursos superiores. No meu tempo ninguém sonhava que poderia haver curso de Jornalismo. Nós aprendíamos uns com os outros. Tínhamos grandes professores.

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Desde cedo que sabia que queria ser jornalista, mas não entrou à primeira. Os primeiros textos foram recusados e logo pelo Mário Castrim, com quem viria a casar-se?
A.V.  É verdade. E estava cheio de razão. Eu tinha uns 15 anos, mas ele dizia-me sempre para continuar a tentar. Levou muito tempo, mas eu fui perseverante. Lá consegui entrar para o Juvenil, que fiquei a dirigir, e depois fiquei sempre no jornalismo.

E as críticas continuaram fortes?
A.V.  Sim, claro. Sempre que escrevia um livro, nunca o dava a ler a ninguém. Mas dava-o a ele [Mário Castrim], para ler. Ele dizia sempre assim: “Primeiro vou ler para ver se gosto. Depois vou ler para emendar.” (Risos) Isso foi óptimo. Ele não mexia em nada da história. Era só a construção.

E isso faz falta?
A.V.  Faz muita. É esse o trabalho de um editor. Pega no texto de um escritor, lê e diz o que não está bem. Há muitos escritores que se lhes tocam numa palavrinha ficam logo ofendidos. Isso é um disparate.

Sessenta anos depois, ainda se considera jornalista. Porém, em 1990 deixou a redacção depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro. Na altura não abordou o assunto. Porquê? Olhando para trás, ainda se revê na decisão?
A.V.  Revejo, sim. Não gosto de falar sobre coisas muito pessoais. Só falei disso passados sete anos e porque a directora do IPO na altura me pediu. Eu estava no Diário de Notícias na altura que foi diagnosticado. Fiz uma mastectomia e o médico disse-me que tinha dois anos de vida. Eu pensei: “Dois anos? Então, olha, vão ser os melhores dois anos da minha vida.” Despedi-me do jornal e pus-me a viajar. Mas depois de dois, três, quatro, cinco anos, pensei que seria melhor voltar a trabalhar e voltar aos livros.

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