A noite já não é o que era
Recai sobre a noite o velho estigma que a define enquanto espaço-tempo marginal, perigoso e de risco, e sublinha-se o estatuto de desviância e irresponsabilidade sobre determinadas formas de socialização juvenil.
“Há caracóis”, responde o Lux depois de o Governo anunciar que os bares e discotecas podem reabrir, desde que funcionem de acordo com as regras aplicadas aos cafés e pastelarias e fechem até às 20h. Desta forma, o Governo tenta manter em suspenso as actividades que têm vindo a ser recorrentemente identificadas na linha vermelha para o risco de infecção por covid-19. Mas, simultaneamente, este “apoio” denuncia o seu desinvestimento neste sector, negando a sua natureza e convidando os/as empresários/as a reinventarem as suas actividades para algo que não são. A actual displicência para com o lazer nocturno contrasta amplamente com a sua promoção e apoio institucional aquando do boom turístico do Porto e de Lisboa e deixa às claras a marginalização, precarização e menorização crónica do valor económico e cultural deste sector.
Enquanto a noite formal está em suspenso, aumenta o alarme social em torno dos eventos autogeridos em localizações ocultas e dos ajuntamentos de jovens durante a noite. “Sabes quem é que também não perde uma festa ilegal? Este vírus”, anuncia o município de Lisboa num dos vários mupis espalhados pela cidade. Desta forma, recai sobre a noite o velho estigma que a define enquanto espaço-tempo marginal, perigoso e de risco, e sublinha-se o estatuto de desviância e irresponsabilidade sobre determinadas formas de socialização juvenil.
O novo diploma aprovado pelo Governo denuncia também algum marasmo e desconsideração pelas propostas concretas dos/as representantes da indústria do lazer nocturno em Portugal, que vêem como insultuosas as novas medidas e encaram-nas como o “fim anunciado” deste sector. Em Portugal, não existe uma estrutura de governança do lazer nocturno nem um colectivo coeso que represente a voz do sector, o que dificulta a criação de uma plataforma de diálogo construtiva, conciliadora e criativa. Enquanto isso, vão surgindo algumas propostas a nível europeu, como é o caso do Plano Global para a Recuperação do Lazer Nocturno, promovido pela Vibelab, que no seu primeiro capítulo avança com um conjunto de recomendações para a organização de eventos de lazer nocturno ao ar livre, em contexto covid-19.
As novas medidas propostas pelo Governo de Portugal negam também a importância e o valor destes espaços-tempos de lazer nos estilos de vida urbanos e contemporâneos. Talvez por isso, nos dias quentes e longos de Verão, as várias esplanadas, praças e parques das cidades se vejam ocupadas por grupos de pessoas sedentas de socialização e de “beber um copo”, e os espaços privados surjam como alternativas para o convívio entre amigos/as. Neste contexto, os próprios sectores da restauração e do lazer nocturno têm vindo a tentar reinventar-se para responder a estas necessidades. Surgem agora, ao fim da tarde, djsets ou pequenos concertos em esplanadas, alguns bares e organizadores de eventos têm vindo a apostar na entrega de bebidas alcoólicas ao domicílio, outros estabelecimentos especializam-se em festas privadas para pequenos grupos, etc.
Neste novo cenário, a noite formal já não é o que era, mas ainda não sabemos o que é nem o que será. Sabemos que, muito possivelmente, esta actividade económica reduzirá drasticamente a sua dimensão e que apenas alguns negócios sobreviverão: aqueles com mais robustez económica ou os que melhor se adaptarem às novas exigências. Podemos também antecipar que o ajuste às necessidades de distanciamento físico, implica uma ampla redução da capacidade dos estabelecimentos que terão, necessariamente, de aumentar os seus preços para garantir a sua sustentabilidade económica. Por esse motivo, talvez a noite se torne um espaço-tempo que oscile entre o informal, clandestino, underground e o formal, privado, elitista e ainda mais segregado.
Seja como for, já é tempo de construir uma plataforma de diálogo entre actores/actrizes governamentais e municipais, representantes deste sector e organizações que investigam e intervêm em ambientes de lazer nocturno como a Kosmicare e o LxNights. Esta discussão é fundamental para o ajuste deste sector às recomendações de distanciamento físico e para uma negociação conciliada de alternativas tendo em vista a amortização dos impactos económicos da covid-19 e prevenindo, de forma pragmática, o seu iminente desaparecimento.
*Cristiana Vale Pires - investigadora na FEP-UCP e membro da Associação Kosmicare; Jordi Nofre é investigador principal FCT no CICS.NOVA e coordenador da rede LXNIGHTS; Iñigo Sánchez-Fuarros é investigador contratado na NOVA FCSH e coordenador do projecto Sounds Of Tourism; Manuel Garcia-Ruiz (CIES-ISCTE).